O Museu Wanderley Pinho, antigo engenho Freguesia.
Um véu de mata atlântica emoldura o que no passado foi um dos mais importantes engenhos do recôncavo baiano. Entre as ruínas que refletem a pujança açucareira e a imponência do sobrado erguido na segunda metade do século XVIII, temos todo um panorama sócio cultural e comercial de séculos atrás. Esse é o antigo Engenho Freguesia atual Museu Wanderley Pinho.
Para o visitante que chega pelo mar, passeando pela baía, o cartão postal se revela iminente, quase que uma volta no tempo. Para quem vem pela estrada, em curvas acentuadas cercadas por resquícios de mata na região de Caboto, Candeias, surge a lateral do sobrado, arruinado pelo tempo com suas belas janelas e balcões no último pavimento. Ao adentrar o espaço que até o final do século XIX contava com um número considerável de escravizados, e toda dinâmica comercial em contato direto com as outras cidades do recôncavo e a então capital Salvador, vivencia-se uma experiência sensorial.
Na primeira parada, no canto direito em direção à baía, encontramos o espaço onde funcionava o engenho. As ruínas evidenciam toda a complexidade do trabalho escravo da época e ainda hoje é possível visualizar os antigos tachos de ferro, fornos, espaços para o melaço, açúcar, colunas e rampas em direção ao mar. Até o final do século XIX, lembrou Wanderley Pinho em um dos seus escritos, o lugar funcionava com sua dinâmica de relações locais e toda a persistência de séculos da mão de obra escravizada na região. Cada pedra, argamassa, telha e as grandes toras de madeira advindas das matas que já foram grandiosas no Recôncavo e cidades adentro mostram a pujança de outrora e o trabalho escravo.
Ao chegarmos no solar, andar térreo, em uma das grandes portas que parecem guardar segredos para ser desvelados, encontramos um quebra cabeças de artefatos: restos de engrenagens, entalhes, adornos decorativos, chaves e faianças. Entre tudo isso surge tímido em meio a poeira da reforma, um “tronco”, cortado em dois pedaços para colocar os braços e as pernas dos escravizados até o século XIX, instrumento de tortura e punição. Um recorte doloroso de um passado não muito distante e com resquícios em nossa sociedade.
Adiante o visitante poderá subir a rampa e se deparar com uma escadaria, desajustada devido a ação do tempo e a ausência de conservação, em direção a Capela e a entrada principal do Solar do Engenho Freguesia. O forro da nave, com uma bela pintura de Nossa Senhora da Conceição, está escorado em um cuidadoso trabalho de restauração e o altar passa por uma detalhada prospecção, cores antigas ou douramentos poderão surgir ali. Ao passar para o casarão vislumbra-se um labirinto de corredores, amplos salões e quartos. No passado diversos personagens em bailes, casamentos, batizados, entrada e saída de mucamas e outros tantos, perambulavam em sua labuta de serviços diários por móveis, pratarias, louças e trançados em cadeiras de jacarandá e pau-d’arco. Hoje os salões estão vazios, só os raios do sol invadem pelas seculares janelas marcando o assoalho com largos pranchões. Por eles também passam a equipe de trabalhadores, engenheiros, arquitetos, restauradores e outros, que devolverão em um ano o Museu à comunidade baiana.
Ainda temos as áreas de serviço composta por uma cozinha, por sua dimensão parece ter saído de um castelo medieval, e seus diversos quartos e escadas que interligam os vários ambientes. O sótão, com uma vista panorâmica para o mar, repousa solitário com todas as janelas abertas no topo do solar, coroando a estrutura, com suas velhas janelas que lembram telas para um filme de quase três séculos.
O Engenho Freguesia foi uma das mais significativas construções erguidas no período colonial na Bahia, começou a ser construído na segunda metade do século XVI, passando por sucessivas reformas. No século XVII, em 1624, o engenho foi atacado e incendiado pelos invasores holandeses. Reerguido passou a ser posse de Antônio da Rocha Pita. No século XIX foi adquirido pelo conde de Passé. O atual solar data dos anos de 1760. O museu foi inaugurado em fevereiro de 1971, recebendo o nome do historiador Wanderley de Araújo Pinho (1890 – 1967), responsável pelo empenho do seu tombamento. A família Araújo Pinho foi a última proprietária do imóvel, hoje está sob responsabilidade do IPAC.
A obra de recuperação e restauro é executada com recursos do Prodetur Nacional Bahia, através de financiamento do BID, no valor de R$24 milhões, sob a responsabilidade da Secretaria do Turismo do Estado SETUR. Ação que assegura a preservação de um símbolo da cultura material, verdadeiro documento de uma velha Bahia.
Breve o futuro visitante encontrará um velho novo Museu aberto para a comunidade e para o povo do Recôncavo. O livro citado de Wanderley Pinho é: História de um Engenho do Recôncavo, de 1946. Uma rara edição que é uma das Relíquias da Bahia.
Semana que vem tem mais.
Rafael Dantas é historiador e artista plástico.