
“As infinitas possibilidades da perenidade”: é assim que a cantora Ana Cañas define o seu novo álbum ‘Vida Real’, lançado no último dia 04 de abril. Rosto conhecido na música brasileira desde 2009, quando lançou ‘Pra Você Guardei o Amor’ com Nando Reis, a artista assina o projeto com uma nova autonomia artística, que resultou em 11 faixas – sendo 10 autorais e uma versão. Com uma base no folk, a versatilidade de Cañas se encontra com o reggae, o sertanejo e com o pop, presentes nas canções do disco, assim como as vozes de: Ivete Sangalo, Ney Matogrosso e Roberta Miranda. Os 14 meses de produção de ‘Vida Real’ – que confluíram com o período de shows da turnê ‘Ana Cañas Canta Belchior’ – resultaram em um belo projeto autoral da cantora, que atingiu um patamar como compositora. Em entrevista exclusiva ao Anota Bahia, Ana falou sobre o processo de produção do álbum, as parcerias e a perenidade da música.
Você já trabalhou ao lado de grandes nomes como Gilberto Gil, Arnaldo Antunes, Nanda Costa, Ney Matogrosso e agora com Ivete Sangalo e Roberta Miranda. Como essas experiências e parcerias agregaram na sua carreira e como a sonoridade de cada um influenciou no desenvolvimento do seu som?
O Ney é o meu oráculo, uma espécie de guru para mim na música. Ele é muito meu amigo, ele tem uma importância muito grande na minha vida pessoal. Quando a gente fez a live do Belchior, ele foi o primeiro a me escrever dizendo, olha, eu acho que tem um negócio aí que vai acontecer para você. Então ele aponta caminhos, quando ele gosta eu confio que tá dando certo, sabe? Ele tem uma incorruptibilidade com a arte e com a poesia, um compromisso que eu acho realmente emocionante. Aos 83 anos de idade ele tá tão vivo, tão pleno, tão ativo. Então eu o escolhi até para começar a contar o ‘Vida Real’. Foi o primeiro single que foi lançado.
Já a Roberta Miranda foi uma decisão curiosa, porque eu sou fã da Roberta mulher, da precursora na música sertaneja, que é um meio bastante machista. E o feminismo acho que é a ponte que nos uniu, porque a canção tem um flerte ali com a linguagem do sertanejo raiz, porque foi composta quando eu passei por uma experiência onde eu fui amante de um cara casado e tudo. E foi uma experiência terrível, foi um inferno, assim, eu rasguei toda a cartilha do meu feminismo e joguei pro alto. Quando eu consegui sair da relação, seis meses depois, eu escrevi ‘Amiga, Se Liga’ e achei que a Roberta, no sentido de que tem um eco da Marília Mendonça. Era uma música que eu nem pretendia que tivesse no disco, mas o meu empresário Fernando Furtado, ouviu a música e falou ‘não, a gente tem que colocar no disco essa música e tal’. A Roberta também é filha de um dependente alcoólico, a gente tem muitas coisas no pessoal que dão essa liga.
A Ivete, meu querido, é o seguinte, eu sou fã de Ivete Sangalo desde a banda Eva, desde a minha adolescência. Eu acho a Ivete um sol do Brasil. Se eu fosse ter um disco chamado ‘Vida Real’, a primeira pessoa que veio na minha cabeça como feat no disco, foi a Ivete Sangalo. Pra mim ela é muito vida real, muito conectada ao seu público, ao povo. Ela é uma comunicadora e uma entertainer de um quilate único. E isso tudo pra mim vem, claro, do talento dela, da cantora que ela é, da artista, mas de uma coisa que ela vibra no peito que todo mundo sente. E depois que eu vi o vídeo do Jamaico, né, porque assim, o Jamaico, aquele vídeo de um minuto e vinte segundos, ele é o estatuto da vida real, entendeu? De quanto um artista se compromete com seu público, ela não sossega enquanto ela não descobre o nome do cara, quando ela finalmente descobre, ela faz a banda tocar pra ele, um Bob Marley. Cara, é uma aula, um doutorado sobre vida real, sobre um artista real. Cara, a Ivete é mestra absoluta, assim, na condução do povo. Então eu tô muito feliz com os três feats, eu acho que eles fazem muito sentido nesse disco. Sou muito fã dos três, muito, muito, muito.
“Pra você guardei o amor” faz um sucesso estrondoso desde seu lançamento lá em 2009, fruto de sua parceria com Nando Reis. Mais de uma década depois a conexão entre os nomes Ana e Nando se mantém viva com a presença de “O Que Eu Só Vejo em Você” no seu recente lançamento. Como é sua relação com o cantor e qual a marca que ele deixa na sua trajetória?
Ele deixou uma marca muito grande, é a canção mais ouvida da década, dos anos 2000 e 2009, e quando ninguém me conhecia. Ele me pegou na mão e falou, ‘olha, eu fiz um negócio aqui meio Crosby, Stills, Nash & Young, queria que você cantasse comigo’. E cara, o Nando, é exatamente o que você falou, eu pensei nessa música como feat, como compositor no disco. Ele não tá cantando a música comigo, mas num disco que tem 10 canções autorais, eu abri espaço pra ele fazer parte como um feat compositor. E foi muito lindo, a gente falou ontem, ele gravou um áudio pra mim, tão lindo, dizendo o que ele sentiu quando ele ouviu a versão. Ele é um poeta. Eu acho que ele tem muito a ver com o Belchior, eu sempre fiz uma correlação do Nando com o Belchior na minha cabeça, da idiossincrasia dos dois, assim, são muito poetas, ligados a uma poesia escrita, né, assim, da música. E ambos são muito populares, o que é muito difícil. Então eu tentei agregar nesse disco todas essas pessoas que eu admiro, que eu sou grata e que eu aprendo com essas pessoas. O Nando também é um amigo, uma pessoa com quem eu falo sempre, estou sempre acompanhando. E difícil pisar num palco e não cantar ‘Pra Você Guardei o Amor’, se não for o show do Belchior. As pessoas não me deixam sair do palco sem cantar essa música. Então faz muito sentido. Eu amei a versão dele também, achei que tem uma homenagem ao Lulu Santos, que é outra referência, né, do pop, assim como a Rita Lee. Tá todo mundo ali, assim, de alguma forma, né, as referências estão todas presentes.
Por toda sua carreira você apresentou uma grande versatilidade musicalidade, seja pelas versões de músicas ou pela turnê revisitando Belchior, que foi um sucesso. No seu novo lançamento, é possível ver claramente essa versatilidade, onde cada faixa tem sua própria identidade, mas mantendo uma conexão fluida entre elas. Como foi esse processo?
Eu sou uma pessoa bastante eclética. Ao longo da minha carreira apareceram muitas coisas, mas eu acho que tem camadas que ficaram mais iluminadas ao longo desses 20 anos que eu canto. Então o rock and roll eu acho que é bastante presente, né? Como você mesmo falou do Led Zeppelin. E essa questão da trovadora com o violão, compondo no violão, mas sem ser um folk que seja fofo, exatamente, só fofo. Tem essa coisa da vida real mesmo, né? Que a vida machuca, a vida nos deixa cicatrizes que nem sempre são aparentes, inclusive. Às vezes a gente carrega as nossas dores profundamente. Então, por exemplo, no disco tem uma música pro meu irmão que faleceu a 10, 12 anos atrás. Foi um processo longo, a gente ficou 14 meses em estúdio. Eu nunca tinha ficado tanto tempo em estúdio, e isso só provou pra mim que eu estou ferrada, porque assim, eu acho que foi essa digressão do tempo que conseguiu amalgamar os arranjos e as músicas. Eu trabalhei com o Dudu Marote, que é um produtor muitíssimo e experiente, e ele foi fundamental na condução desse timoneiro aí, desse barco. O Fernando Furtado, meio que lá em cima, com aquela luneta falando ‘olha, aqui é legal, aqui não é, aqui vai dar pé, aqui não vai’. E eu tava sendo muito conduzida pela experiência deles, mas também a minha opinião sempre prevaleceu, mesmo quando eu discordava de ambos, assim, então, eu acho que isso deu muito certo, e eu acho que foi esse tempo.
Às vezes eu ficava meses sem ouvir uma música do meu disco, e voltava a ouvir, e sentia imediatamente assim, ‘pô, isso aqui precisa ser melhorado’, ‘essa parte da letra precisa ser excluída’. Houve um rebuscamento no disco como um todo, de todos nós. O que só demonstra para mim que para o resto da minha vida eu acredito que eu deva fazer discos longevos novamente, porque é isso que propicia um resultado sólido se você pretende alcançar alguma perenidade com o seu trabalho. Eu acho que o tempo ele é muito importante. Hoje a gente está num momento que tudo é muito rápido. São muitas abas abertas. Então assim, você mergulhar de corpo e alma, permitindo que o tempo decante a informação, é algo muito precioso, raro de se poder fazer e a gente conseguiu. Eu ainda estava em turnê com o Belchior quando eu comecei a gravar o disco. Foi muito legal também esse diálogo dos três últimos meses do Belchior, onde a gente fez 35 shows em três meses, é bastante. E isso enquanto em estúdio. Então eu lembro que eu ficava em estúdio na segunda, terça e quarta, já na quinta eu saía pra estrada, voltava segunda e já ia pro estúdio. Eu nem sei como eu fiz isso, mas eu fiz. Foi interessante sair do palco e ir pro estúdio, sair do palco e ir pro estúdio. Porque eu via muito vívida, assim, a sensação muito viva de, gente, é isso que funciona, é isso que emociona, é isso que atravessa. E é isso que eu quero no meu disco.
E tem o insondável da arte, né? É mágica. Eu acho que, por mais que eu tente responder, eu posso só fazer parâmetros em relação aos meus trabalhos anteriores. Esse disco é muito superior, acredito, a qualquer trabalho que eu já tenha feito autoral. Mas eu acho que existe uma coisa chamada insondável na arte, que em certos momentos acontecem mágicas encontros, músicos, parece que tudo flui, que tudo está orquestrado, que tudo está azeitado. Quando eu falei com a Ivete, ela topou, eu falei com o Ney, ele topou, eu falei com o Roberto, ela topou. Tipo, tem uma coisa que tá fluindo, a energia.
Seu novo álbum traz várias “Anas”, junto com suas experiências e lutas, que estão presentes nas letras. Em “Quero Um Love”, traz o tema de relacionamento, em “Amiga, Se Liga” e “Toda mulher é além”, traz o empoderamento e a feminilidade. Como você enxerga o papel das letras de registro, mantendo vivo momentos e promovendo o debate de temas?
Tem um vídeo da Nina Simone, que eu adoro, que é muito forte esse vídeo e circula pela internet toda hora, que ela fala: ‘Se o artista não refletir o seu tempo, ele não é um artista’. Isso sempre me pegou muito, essa frase dela, o comprometimento do artista com o seu tempo. Felizmente, a gente está num tempo que o feminismo e as camadas do feminino estão sendo debatidas, através da internet, das redes e alcançando até novelas, séries, isso é muito legal. A gente luta muito para que isso aconteça. Eu tenho um histórico com isso, de um trabalho como ‘Todxs’, que é um disco bastante militante em relação ao feminino e ao feminismo, e ‘Respeita’ que é um single muito importante na minha carreira, com 90 mulheres no clipe, com Maria da Penha e tantas outras, um clipe muito forte. A Elza Soares está nesse clipe também. É isso, eu acho que não podia faltar esse recorte.
Mas tem uma questão que você falou que existem várias ‘Anas’, né? Eu acho que todas nós mulheres somos muitas, a Rita Lee dizia que toda mulher é louca pra caramba. E eu concordo no sentido de a gente já nascer numa situação de cerceamento, de disputar espaços, a gente luta por espaços e continua lutando. Então a gente desenvolve, personas, máscaras. A gente entende que em tal lugar não posso, porque se eu fizer vai dar ruim, e em tal lugar eu vou lutar por isso, tal lugar eu não posso andar na rua porque senão de madrugada eu corro risco de vida. A gente vai desenvolvendo várias mulheres dentro da gente. Não sei se ao nascer homem talvez seja difícil imaginar isso, mas é o que a gente vive, de verdade. A gente fica com várias abas. Agora, aqui, a gente faz uma leitura do espaço das pessoas que estão no entorno e sabe das consequências de cada lugar, por causa da opressão mesmo. Eu acho que a gente avançou muito. Eu estou muito feliz nos últimos dez anos para cá, com a ascensão das escritoras pretas que são muito importantes, a Djamila Ribeiro, a Joyce e, enfim, escritoras também do mundo todo. Mas eu sempre, por exemplo, li Simone de Beauvoir. Eu fui ler ‘O Segundo Sexo’, eu tinha 22 anos de idade. Eu acho que é um caminho, mas que eu sempre digo, e é o que a Rita Lee também sempre dizia, vai ser aos poucos, mas vai ser.
Em 2017 você lançou o clipe de “Respeita”, que contou com a participação de várias mulheres e várias artistas nacionais. Como foi organizar um projeto como esse? Existe o planejamento de dar continuidade a essas congregações de nomes, enaltecendo a potência feminina em projetos?
Isso tá sempre em movimento dentro da minha carreira. Recentemente eu conheci uma cantora, em Brasília, uma mulher preta maravilhosa chamada Tereza Lopes. Eu não a conhecia, fui cantar num bloco e fiquei encantada com ela. Ela trabalha no Senado e ela é uma super cantora, eu falei, ‘Tereza, quando eu vier fazer meu show em Brasília, do meu disco novo, eu quero que você venha cantar comigo, você pode escolher qualquer música’. Como você falou, no disco tem ‘Toda Mulher é Além’ e eu quero muito fazer um clipe para essa música, acho que ia ser muito legal. Eu quero fazer clipe para várias músicas do meu disco. Eu tô sonhando assim do Walter Salles dirigir o meu clipe de ‘Vida Real’. Depois que eu abri o show da Alannis Morissette, eu tô sonhando alto, entendeu, porque agora que eu já vi que sonhos se realizam, eu tô assim, tocando terror. Mas assim, eu tô sempre em movimento com as parcerias.
É que eu sempre digo, a sororidade é muito bonita na ‘tioria’ como diria o Belchior, ‘tioria’, mas na prática é que o negócio pega. O exercício da comunhão e da soma é muito a prática. A gente precisa desse momento, agora que está um pouco mais atrasado e devagar, a prática do feminismo e da sua sororidade real, porque a gente é estimulada a essa competição. E na verdade tudo isso é só para não nos unirmos e não termos a consciência de que juntas é que vamos além. Então está sempre em trânsito isso para mim e sempre vai estar. Eu tenho recebido muitos convites sempre dessa coisa do feminismo, do feminino e eu fico muito honrada. Inclusive agora eu recebi convite para fazer coisa no Cazuza da Rolling Stones, aí coisa do Raul Seixas no Circo Voador. Ainda tem uma banda que vai comemorar uma marca e eu sei que os convidados são João Gordo, Andreas Kisser, Dinho Ouro Preto. Eu tô vendo que eles estão me colocando no rolê dos homens. Eles estão me considerando aquela mulher que vai ocupar e eu quero ocupar, eu quero ir ali mesmo no meio deles e, se eu puder representar as mulheres, eu vou ficar sempre muito honrada com isso, com certeza.
Você falou sobre Walter Salles, mas você já teve um clipe dirigido por Selton Mello, como é sua relação com ele?
Eu amo o Selton e, inclusive, ele me escapou porque eu o convidei para dirigir o clipe de ‘Derreti’ e aí ele não pôde, porque já tava viajando para divulgação do filme ‘Ainda Estou Aqui’. Ele tava já indo para Europa com a Fernanda. Aí eu falei tudo bem, ‘vou fazer com outra pessoa, mas daqui a pouco você não me escapa’. A gente tem planos de fazer um clipe juntos, eu falo também com o meu amigo, Wagner Moura. Inclusive, cheguei a falar com ele para ver a possibilidade de fazer um clipe com a Ivete aí em Salvador, de ‘Brigadeiro e Café’, mas assim né, perdemos Wagner Moura né meu querido. Wagner Moura virou uma estrela maravilhosa, em ascensão em Hollywood, ainda bem, tô muito feliz por ele, acompanho tudo. Então eu fico caçando os meus amigos assim, tipo vem aqui, dirige meu clipe e vem aqui, uma hora dá.
“Vida Real” apresenta várias referências em sua musicalidade, mas uma em específico me chamou a atenção. Qual a influência do estilo de Bob Dylan no processo criativo do álbum?
Eu lembro quando eu ouvi o Bob Dylan a primeira vez. Quando eu comecei a cantar, eu cantava nos bares e cantava muito jazz. Eu cantava as cantoras pretas, tipo Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Nina Simone, Carmen McRae e tal. E aí eu tava muito imbuída dessa coisa de ser cantora da noite, estudando ali, praticando. E um belo dia, eu ouvi uma canção do Bob Dylan e eu peguei a tradução da letra pra ler. E cara, assim, eu lembro desse dia que eu li uma letra do Bob Dylan, que curiosamente foi ‘Blowing in the Wind’, que tem uma frase lá que está no release do meu disco novo: ‘Quantos mares uma gaivota deve sobrevoar antes que ela possa repousar na areia’. Isso faz muito sentido na minha vida agora. Então eu tô sempre em conexão e diálogo com o Dylan, e acredito que o Belchior também. O Belchior tem muita influência do Dylan, porque você não escapa. Ele foi o único cara da da história da música a ganhar o prêmio Nobel de Literatura. Então quando você toma consciência do que ele foi capaz de escrever, porque veja bem, se você analisar o Dylan pelo ângulo purista do cantor, do cara que toca violão, você vai falar, ‘meu Deus, esse cara é muito ruim’, mas não é isso que está em jogo ali. A provocação já começa ali, entendeu? Ele não quer ser um exímio nada, ele só quer ser o maior letrista da história da música mundial e ele é.
Vai ser muito difícil alguém alcançar as metáforas e trazer toda a dimensão que ele conseguiu do espiritual, do humano, do coletivo, das classes sociais, dos embates, dos abismos. E eu posso ficar aqui minutos e horas falando de tudo que o Bob Dylan fala nas letras dele, né? Então, quando você tem acesso ao que ele escreveu, você estabelece um parâmetro sem igual. A meta é sempre olhar pro Bob Dylan, assim como eu olho também pra Rita Lee. Eu tive uma fase muito Elis Regina no começo da minha carreira, que eu tinha coisa da intérprete e tal, eu nem achava que eu ia compor, imagina. Hoje eu olho pra Rita com mais admiração do que eu olho pra Elis, eu percebo isso. Embora a Elis sempre pra mim vai ser a maior cantora de todos os tempos do Brasil, pelo menos é a que mais me atravessa. Tem a Gal, tem a Bethânia, tem muitas, mas a Elis é aquela que me arranca a lágrima, sabe? Mas hoje eu olho pra Rita, tipo, ‘mano, essa mulher, além de tudo, ela escreveu essas músicas’, quer dizer, o trabalho de composição ali, da atitude, do roqueiro, de ter a atitude de rock’n’roll, sendo mulher desde os anos 1970, nossa senhora. Não à toa elas eram amigas. A Elis foi visitar a Rita na prisão e com certeza ela já olhava pra Rita também com essa mesma admiração que eu alcanço agora, assim, como compositora.
Em outra oportunidade você esteve aqui em Salvador para a turnê de Belchior e, um tempo depois, grava uma música com uma grande voz da música baiana que é Ivete Sangalo. Qual sua relação com Salvador e com a Bahia. A cidade está na rota de uma futura turnê/projeto?
Com certeza. A gente já tem a data de Salvador, que possivelmente será em outubro. Não tem como você entender o Brasil sem conhecer Salvador, a Bahia. É que Salvador é o epicentro da Bahia, mas existem muitas Bahias dentro da Bahia, como existem muitas Minas Gerais dentro de Minas Gerais. É curioso isso. São estados que estão centralizados no Brasil. Então, quanto mais eu vou a Salvador, mais eu percebo que Salvador tem uma particularidade para mim que é a camada sexual. Me parece uma cidade que tem essa libido e eu acho isso maravilhoso. Eu lembro que uma vez eu estava com uma amiga em Salvador e essa amiga era uma mulher gorda. E eu lembro de comentar com ela. Eu falei, ‘Amanda, é impressão minha ou as mulheres aqui em Salvador são mais livres?’. Porque eu vi muitas mulheres gordas em Salvador usando tops, shorts, roupas assim. E eu fiquei emocionada com isso, no sentido da liberdade, da maior liberdade do corpo. E a Amanda falou: ‘sim, isso acontece aqui. É por isso que eu venho tanto para cá, porque quando eu estou aqui, eu sinto que eu posso usar um shorts e um top e eu vejo os meus pares também usando’. E foi uma dimensão que eu tomei ali do feminismo, do corpo da mulher, muito interessante assim, que nunca vai sair de mim.
[Salvador] também é o lugar de maior população preta do nosso país, que traz uma outra dimensão também dessa discussão que é tão importante para o Brasil e tão importante nesse momento, né, da gente falar disso em relação ao racismo, de sermos aliados, nós como pessoas brancas. Então é uma cidade que catalisa muitas idiossincrasias. Eu pessoalmente adoro a particularidade do baiano em si, sabe? Jorginho Veloso, que é muito meu amigo, por exemplo, é uma das pessoas que eu mais amo conversar. Então o baiano ele tem essa coisa que fala arrastado e tem o tempo do tempo, sabe? Então estar na Bahia sempre uma alegria. Eu fiz um grande show no TCA que foi inesquecível na turnê do Belchior. Uma das maiores emoções dos 180 shows que a gente fez, foi no TCA. Eu me lembro de ter sido aplaudida em cena aberta, durante o show, quando eu cantei ‘Paralelas’ pela primeira vez. Eu nunca tinha cantado Paralelas e aquilo é um momento que eu nunca vou me esquecer. Foi de uma honra. Eu fiquei muito emocionada, chorei. Ser aplaudido em cena aberta durante um show é muito difícil, né? As pessoas têm que realmente estar bastante comovidas com o que aconteceu. Então, nossa, eu adoro Salvador. Minas Gerais e a Bahia, para mim, são dois estados muito especiais no meu coração.
Olhando um pouco para trás, o que você acha que mudou da Ana que começou a carreira por volta de 2007 até seu eu de agora, nacionalmente conhecida por sua arte? Como você enxerga sua trajetória até aqui?
Eu fui começar a cantar com 21 anos para sobreviver. A minha história é bastante singular e eu nunca me vi cantora, mas de repente eu tava numa situação de super vulnerabilidade, morando num pensionado com profissionais do sexo. Aí um amigo pediu pra eu fazer um teste num bar cantando Billie Holiday, e eu topei porque eu não tinha dinheiro pra pagar o quarto do pensionado que eu dormia, que só tinha rato e barata. Então eu virei cantora nessa situação, passando quase fome. E nessa época eu distribuía panfleto no farol, pra você ter uma ideia. Então, o que a música me trouxe de lá pra cá, desde 2001 até agora, quase 25 anos, foi muita coisa. Eu mudei muito e também não mudei muito, sabe? Eu acho que tem muita coisa que continua igual. Eu sou muito aguerrida, muito determinada, muito obstinada. Eu quando eu quero uma coisa eu vou atrás, eu luto por aquilo. Lembro que quando era cantora dos bares eu fazia uns cartazes dos meus shows e eu colava nos bares aqui em São Paulo nos banheiros masculinos, em cima dos mictórios. O cara ia fazer xixi e ele vê o meu show, E assim, eu tô te falando de um show num barzinho pra 50 pessoas. Eu era essa pessoa que ia lá, imprimir o cartaz na folha de sulfite, comprava tinta de impressora com dinheiro que eu não tinha.
De uma certa forma, continuo essa pessoa, porque a turnê Belchior foi muito na raça também. Eu aluguei o teatro, coloquei luz, coloquei som, paguei as passagens da banda, paguei os shows e rezei pra vender ingresso. Basicamente, foi isso que aconteceu. Por isso que a gente teve essa envergadura, esse alcance tão grande e foi muito rica essa experiência. Então, a pessoa que colava o papel sulfite lá no banheiro, é a mesma que vai para Porto Velho, ou para Manaus, ou para o interior do Piauí, em Oeiras, fazer um show do Belchior. Nesse sentido, eu continuo a mesma pessoa, mas eu acho que a maturidade, a compreensão da responsabilidade da música e da arte em cima do palco, mudou bastante. Isso mudou radicalmente, de entender o papel do artista. Eu acho que eu entendo muito mais o que a Nina Simone fala agora, sabe, em outras camadas. De ser mulher na música, mulher no mercado brasileiro da música. Isso é diferente. Ser uma mulher que tá à frente do trabalho, porque eu tenho pessoas maravilhosas que trabalham comigo, mas eu que tô tocando ali o dia a dia sempre, tudo passa por mim.
Então, eu entendo a responsabilidade desde uma vírgula num post, tudo que é postado passa por mim, até estar em cima do palco cantando com microfone na mão de frente para as pessoas, que às vezes são 500 pessoas mil pessoas às vezes são 20 mil 30 mil 50 mil. É uma responsabilidade muito grande, sabe? O que você vai dizer, o que você vai cantar, como você vai se portar. Então estou sempre pensando sobre isso. Nesse sentido, acho que houve um amadurecimento mesmo que vem da idade. Eu tô com 44.

