Luís Guimarães

Carlos Pires Brandão – ministro do STJ detalha atuação da Praça de Justiça e Cidadania de Canudos

    Carlos Pires Brandão, ministro do Superior Tribunal de Justiça. Foto: Divulgação

    A histórica cidade de Canudos, no sertão da Bahia, recebe entre esta quarta (1º) e sexta-feira (3) a chegada do projeto Praça de Justiça e Cidadania. Mais de 20 instituições estão em uma força-tarefa inédita para levar Justiça diretamente às comunidades vulneráveis, numa colaboração pioneira entre os poderes públicos nas três esferas de governo e a sociedade civil. Durante os três dias do evento, a população terá acesso gratuito a uma gama abrangente de serviços públicos e ações de cidadania em um só lugar.

    A iniciativa é concebida no âmbito do programa ‘Casa de Justiça e Cidadania’ do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), além de representar um modelo inovador de governança interinstitucional que integra serviços jurídicos, sociais, de saúde e educação. Esta articulação interinstitucional exemplifica o conceito de “ecossistema de justiça”: diferentes instituições atuando de forma coordenada para oferecer soluções complexas a problemas complexos.

    Atuam como parceiros: Ministério Público Federal, as Defensorias Públicas federal e estadual, INSS, INCRA, Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste, secretarias estaduais de Meio Ambiente e Justiça, DNOCS, FIEB e órgãos municipais.

    A ação conta com o apoio do ministro Carlos Pires Brandão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que em entrevista ao Anota Bahia, enalteceu a atuação conjunta dos órgãos em prol da população, destacou a importância da Justiça Restaurativa, da união entre o âmbito jurídico, social e cultural, além de detalhar a missão do projeto.

    “A Justiça deixa de ser apenas tribunais e processos, e passa a incluir múltiplos atores interagindo e trabalhando em rede para a elaboração de soluções adequadas, legítimas e eficientes aos desafios de uma sociedade que se torna cada dia mais complexa”, disse o ministro Brandão.


    – O que te levou a apoiar o projeto Praça de Justiça e Cidadania e quais impactos positivos pode gerar em Canudos?

    Ministro Carlos Pires Brandão – Nossa motivação decorre da trajetória construída no Ministério Público e no Poder Judiciário, sempre voltada a aproximar a justiça do cidadão. O projeto da Praça de Justiça e Cidadania de Canudos não nasceu de uma decisão burocrática ou de gabinete.

    Ao longo da carreira, participamos de juizados itinerantes, audiências públicas, círculos de paz, em ônibus, barcos, viajando por este imenso e rico Brasil. Ao abrir mão do conforto e da formalidade dos gabinetes, nos aproximamos de comunidades remotas para mediar conflitos de natureza administrativa, social e cultural. Assim, fazemos valer a nossa Constituição, efetivamos direitos fundamentais e transformamos positivamente a vida das pessoas. As instituições que compõem a República devem cumprir os objetivos constitucionais, como a garantia do desenvolvimento humano e social, erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e geográficas, enfim, a promoção do bem comum, construindo uma sociedade justa, livre e solidária.

    Lembramos, com certo orgulho, de projetos de regularização fundiária, a exemplo do Viva Alcântara, que titulou terras de comunidades quilombolas após décadas de disputa, que chegou a tribunais internacionais. Coordenamos com outros magistrados círculos de mediação entre comunidades tradicionais e a institucionalidade, que permitiram a organização de estruturas de serviços, em face de demandas complexas e policêntricas, que dependiam da concorrência, do acerto de diversas vontades, muitas vezes desencontradas, por absoluta falta de diálogo institucional.

    Essa experiência institucional nos proporcionou uma compreensão do papel do sistema de justiça em sociedades, como a nossa, que são marcadas pela exclusão. Essa exclusão é herdada de um processo histórico que remonta ao período colonial e foi, vale ressaltar, estruturado pela escravidão. Assim, essa vivência institucional nos permitiu entender que herdamos, desse processo histórico, uma estratificação social que naturaliza a desigualdade, tornando os fatores invisíveis.

    A escolha de Canudos não foi aleatória, mas sim emblemática de uma dívida histórica de 128 anos e da violência estrutural. A Guerra de Canudos, um dos episódios mais sangrentos da história republicana, resultou na morte de milhares de pessoas devido à absoluta falta de diálogo. Essa carência gerou incompreensões e respostas institucionais violentas, baseadas em premissas demonstradamente falsas. Em resumo, a tragédia foi uma consequência direta da ausência de comunicação entre o “Brasil oficial” e o “Brasil real”.

    A Guerra de Canudos (1896-1897) não foi um mero conflito militar. Na formulação de Euclides da Cunha em “Os Sertões”, representa o encontro trágico entre “dois brasis”. Um do litoral que se pretendia moderno e republicano, outro sertanejo, sob a acusação de atraso, desatino e alienação, de ser contrário à evolução política encetada pelo positivismo que inspirou os anos primeiros da República.

    As investidas não se resumiram a ações físicas e militares. Elas se reproduziram em diversas dimensões, inclusive simbólica, produzindo sentimentos antagônicos que ampliaram as fraturas sociais e geográficas, escalando os fatores de exclusão. Essas repercussões, que certamente ainda alcança a região, precisam ser compreendidas e tratadas, a partir do diálogo, de círculos restaurativos de paz, na perspectiva de que todos somos brasileiros e devemos ter o dever de cuidado com o próximo.

    Com lideranças do Tribunal de Justiça da Bahia, sob a presidência da Desembargadora Cynthia Resende, do Sistema de Conciliação, sob a Coordenação da Desembargadora Marielza Brandão, e do SistCon do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sob a coordenação do desembargador Cesar Jatahy, programamos levar a Praça de Justiça para Canudos, sob a compreensão desses fatores históricos que matizam a Região.

    Por meio de termos de cooperação, construímos um arranjo institucional capaz de abrigar essa compreensão histórica. A partir de modelos dialógicos, construímos para a Praça de Justiça de Canudos uma rede com diversas instituições públicas e sociais, de governança colaborativa. O arranjo propõe um Judiciário que facilita, que media, que convoca, que articula. Em suma, um Judiciário que crie condições institucionais para que direitos se efetivem através do diálogo entre Estado e sociedade, entre diferentes níveis de governo, entre instituições públicas e sociais.

    A arquitetura institucional desenhada inclui, além do Judiciário Federal e Estadual , o TJBA, MPF, DPU, DPE-BA, INSS, INCRA, Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste, DNOCS, TRE-BA, Secretaria de Justiça da Bahia, Secretaria de Meio Ambiente, SAC Móvel, FIEB, UNEB, prefeitura de Canudos, organizações comunitárias. São mais de 20 instituições de três níveis de governo trabalhando de forma coordenada para entregar serviços integrados.

    Desenhamos uma Rede Colaborativa que coloca o cidadão no centro da atuação judicial. Na Praça de Justiça, o cidadão vai a um único local e encontra todas essas instituições esperando por ele. Ele não precisa percorrer o labirinto burocrático; são as instituições que se coordenam para facilitar sua vida. Os serviços oferecidos estão centrados no cidadão. Esses experimentos exitosos certamente serão, com o passar do tempo, incorporados no cotidiano institucional.

    Em segundo lugar, o arranjo desenhado articula justiça, cultura e inclusão social de forma orgânica, e não artificial. Constitui um ecossistema de instituições. Oferece assistência jurídica e promove apresentações de repentistas locais e bandas de pífano; realiza audiências de conciliação e também organiza visitas ao Memorial Antônio Conselheiro; realiza perícias médicas previdenciárias, mas também promove círculos temáticos sobre adaptação climática e segurança alimentar. Enfim, a Rede trata a cidadania de forma multidimensional, indivisível.

    Estruturamos para Canudos uma Rede que trata cada pessoa como um ser situado, marcado por contextualidades. Não é apenas um jurisdicionado abstrato. Cada indivíduo carrega raízes culturais, memória histórica, desafios econômicos reais e necessidades em saúde, com aspirações de futuro. Se o Judiciário quer realmente servir à cidadania, precisa enxergar o ser humano em sua integralidade. Por isso, os serviços devem ser oferecidos de modo orgânico.

    Em terceiro, temos a percepção de que a Praça de Justiça de Canudos imprime efeito multiplicador, que transcende o atendimento imediato. Durante os três dias, atenderemos milhares de pessoas. Mas o impacto vai muito além dos números. Quando uma comunidade vê o Estado chegando não com armas, mas com serviços concretos e atenção respeitosa, algo muda na relação entre cidadão e instituições públicas. A confiança, às vezes desgastada pela ineficiência, pela indiferença, começa a se reconstruir.

    Anos atrás, inauguramos o Posto Avançado de Conciliação e o Ponto de Inclusão Digital em Canudos. Não estávamos apenas deixando infraestrutura. Estávamos sinalizando permanência e compromisso. Estávamos dizendo: “Não viemos aqui para um evento de marketing institucional; viemos para ficar, para servir”.

    Quando realizamos a audiência pública de conciliação relativa à Guerra de Canudos, em que se buscam reparações, políticas públicas, estamos, de algum modo, enviando mensagens para eventuais injustiças históricas, e isso tem impacto não apenas em Canudos, mas alcança todo o Brasil.

    Em quarto, a Praça de Justiça e Cidadania em Canudos desafia a própria narrativa dominante sobre o papel do Judiciário. Existe uma visão, muito disseminada, de que o Judiciário é uma máquina de resolver conflito, que opera de forma lenta, cara, ineficiente, elitista. Em nossa sabatina no Senado, lembramos que “o Judiciário não pode ser uma máquina de conflito; o Judiciário deve promover a paz, o desenvolvimento, a segurança jurídica e a confiabilidade nas instituições”.

    Projetos como a Praça de Justiça demonstram na prática que é possível um Judiciário atualizado com as promessas constitucionais, juridicamente mais adequado para as demandas de uma sociedade complexa e desigual. Um Judiciário que, quando necessário, sai de seus fóruns e busca encontrar a sociedade, para compreender suas aspirações, o espírito do tempo.

    A Praça de Justiça e Cidadania materializa essa transição do modelo burocrático-weberiano – hierárquico, especializado, fragmentado, onde cada órgão opera isoladamente e o cidadão precisa navegar labirintos procedimentais – para aquilo que a teoria contemporânea de governança pública denomina governança em rede. Na sociedade contemporânea, hiper conectada, marcada pela complexidade, as estruturas hierárquicas verticais, as burocracias construídas pela modernidade perdem efetividade em face dos problemas transversais complexos que demandam articulação horizontal.

    Um agricultor de Canudos, por exemplo, enfrenta simultaneamente insegurança fundiária, vulnerabilidade previdenciária, ausência de documentação civil, necessidades de saúde, e desafios de adaptação climática em região semiárida. Ora, nenhuma instituição isoladamente resolve esse conjunto de problemas. Dessa forma, a rede colaborativa torna-se um imperativo funcional, não apenas inovação desejável.

    Em quinto, o Projeto da Praça de Justiça e cidadania de Canudos foi concebido de modo que possa ser replicado e escalado. Desenvolvemos uma metodologia reproduzível. O que estamos realizando em Canudos pode ser adaptado a diferentes contextos, mantendo os princípios centrais: governança colaborativa interinstitucional, serviços integrados de cidadania, ênfase em justiça restaurativa, valorização de identidade cultural local, abordagem de questões estruturais, como regularização fundiária, adaptação climática, acesso a benefícios sociais.

    Em síntese, aprendi nessas experiências que quando você coloca o cidadão no centro, quando articulamos justiça com cultura e inclusão social, quando construímos pontes entre instituições ao invés de silos burocráticos, a justiça deixa de ser um privilégio distante e se torna um direito vivido.

    E isso, para mim, é o que significa honrar o juramento que fiz ao me tornar magistrado, e que renovei ao tomar posse como Ministro do Superior Tribunal de Justiça: servir com fé, trazendo a voz das pessoas mais vulneráveis do país para o coração do sistema de justiça brasileiro.

    – Qual a importância de se promover, dentro do programa, serviços de Justiça Restaurativa?

    Ministro Carlos Pires Brandão – O passar da vida institucional nos foi deixando convencidos de que o sentimento de justiça reclama reparação, e não existe reparação sem escuta, sem reconhecimento, sem restauração dos laços sociais que foram rompidos.

    A Justiça Restaurativa concretiza esse ideal, sendo regulamentada pela Resolução CNJ 225/2016 e priorizada em 2025 como o Ano da Justiça Restaurativa nas Instituições. Ela representa uma mudança de paradigma em relação ao modelo retributivo-punitivo que moldou a modernidade jurídica, o qual ainda opera sob a lógica binária de lícito/ilícito e culpado/inocente. Esse sistema tradicional, fundamentado em matrizes conceituais e normativas, frequentemente resulta em decisões que impõem sanções, mas raramente abordam as causas estruturais dos conflitos ou reparam os laços sociais fragilizados.

    Em contraposição, e na perspectiva de superação desse paradigma retributivo-punitivo do sistema tradicional moderno, a Justiça Restaurativa parte de premissas radicalmente diferentes. Ela entende que o crime ou o conflito não é apenas uma violação de normas abstratas, mas uma ruptura de relações humanas e comunitárias. E se o problema é relacional, a solução também precisa ser relacional.

    Os princípios que orientam a Justiça Restaurativa – co-responsabilidade, reparação de danos, voluntariedade, participação, empoderamento, consensualidade – vão ao encontro direto do que defendo há anos sobre o constitucionalismo dialógico. Em minha sabatina, eu disse que “a última palavra não deve ser do judiciário; sempre deve haver abertura para o diálogo”. A Justiça Restaurativa materializa essa abertura.

    Agora, por que a Justiça Restaurativa é especialmente importante em Canudos? Primeiro, porque Canudos é uma comunidade com trauma histórico profundo. Esse tipo de sentimento, em princípio, não se apaga com o tempo. Ele se transmite intergeracionalmente, criando feridas coletivas que permanecem abertas por gerações.

    A Justiça Restaurativa oferece abordagens, estratégias para abordar essas feridas de forma coletiva e comunitária. O “Grande Círculo de Paz e Cidadania” constitui um espaço onde autoridades e comunidade se sentarão juntas, em círculo, para dialogar sobre passado, presente e futuro. Essa horizontalidade é fundamental para a cura social.

    Segundo, porque comunidades vulneráveis frequentemente vivem ciclos de violência que o sistema tradicional não consegue romper. Canudos está inserido em um contexto regional de fragilidade estrutural. Quando há esse nível de vulnerabilidade sistêmica, o modelo punitivo tradicional costuma perpetuar ciclos de marginalização ao invés de quebrá-los.

    Terceiro, e talvez mais importante, a Justiça Restaurativa é intrinsecamente empoderadora. Ela transforma cidadãos de espectadores passivos do sistema de justiça em agentes ativos de sua própria transformação. Quando promovemos círculo de paz, não estamos apenas oferecendo informações técnicas sobre adaptação climática ou regularização fundiária. Estamos criando um espaço onde agricultores locais, que vivem a realidade da desertificação no dia a dia, podem dialogar com especialistas do INCRA, do Banco do Nordeste, do DNOCS.

    Isso é empoderamento real. Horizontalizam-se a elaboração e a implementação das políticas públicas, fazendo com que as comunidades, ao invés de serem objetos de políticas públicas decididas em burocracias, passam a ser sujeitos com conhecimento, experiência, com o direito a participar das decisões que alcançam suas vidas

    Por fim, importa fazer uma conexão fundamental: a integração entre resgate histórico e Justiça Restaurativa não é acidental; é essencial. Quando incluímos na programação visitas ao Memorial Antônio Conselheiro, ao Parque Estadual de Canudos que preserva o Alto da Favela e os sítios de batalha, quando promovemos palestras sobre a memória de Canudos e apresentações culturais com repentistas e bandas de pífano locais, estamos fazendo Justiça Restaurativa em escala histórica e cultural.

    Essa abordagem restaurativa tem efeitos materiais profundos na autoestima coletiva, na identidade cultural, na forma como uma comunidade se vê e se projeta para o futuro. Assim, há um pioneirismo na Praça de Justiça e Cidadania de Canudos. A praça integra a Justiça Restaurativa não apenas em conflitos individuais, mas em um projeto amplo de cidadania, reparação histórica e desenvolvimento comunitário. Esse experimento institucional pode ser levado a tantos outros territórios, onde o Estado brasileiro tem dívidas históricas e a população carece de acesso efetivo à justiça.

    – Por que articular justiça, cultura e inclusão social? Qual o real impacto dessa articulação?

    Ministro Carlos Pires Brandão – Esta articulação fundamenta-se na premissa de que os direitos fundamentais são indissociáveis, interligados e mutuamente dependentes. A distinção liberal clássica entre direitos civis-políticos (negativos, primeira geração) e direitos econômicos-sociais-culturais (positivos, segunda geração) fragmenta artificialmente aquilo que, na experiência vivida, é indissociável.

    A Praça de Justiça e Cidadania de Canudos opera nessa integralidade: dimensão jurídica (assistência legal, documentação, regularização fundiária, acesso a benefícios previdenciários) fornece recursos formais; dimensão cultural (resgate histórico, celebração de identidades sertanejas, reconhecimento de injustiça colonial) opera sobre fatores de conversão simbólicos — autoestima, reconhecimento, legitimação; dimensão de inclusão social (educação financeira, círculos sobre adaptação climática, acesso a crédito rural) fornece capacidades práticas para converter recursos em bem-estar concreto.

    As três dimensões são mutuamente constitutivas. Ter título de terra (justiça) sem conhecimento sobre práticas agrícolas sustentáveis em semiárido (inclusão) limita produtividade. Ter conhecimento técnico sem segurança jurídica para investir limita aplicação. Ter ambos em contexto de desvalorização cultural compromete motivação e autoconfiança. A articulação não é soma, mas sinergia emergente.

    – Qual o impacto estrutural de projetos que colocam o cidadão no centro?

    Ministro Carlos Pires Brandão – “Colocar o cidadão no centro” não pode ser retórica gerencial vazia. Requer transformação arquitetônica na organização institucional do Estado. A transição que vivemos é da burocracia weberiana – caracterizada por hierarquia piramidal, especialização funcional, formalismo procedimental, órgãos autônomos operando em silos isolados – para o que a teoria contemporânea denomina de governança em rede colaborativa.

    A Praça de Justiça, operando em rede colaborativa, leva o sistema de justiça à comunidade local, cria espaços deliberativos onde conhecimento técnico-científico se integra com saberes práticos situados.

    Fica patente a reconfiguração de relações Estado-sociedade. Desenvolvem-se na Praça serviços concretos, em diálogo horizontal, reconstruindo a confiança, onde promessas são cumpridas.

    Ressalte-se que, quando o Judiciário vai até Canudos ao invés de exigir que Canudos venha aos tribunais, está invertendo a geografia colonial do poder. Quando valoriza a cultura sertaneja, desafia a colonialidade do saber. Quando reconhece injustiça histórica e busca reparação, rompe a amnésia colonial.

    Concluo enfatizando que esses quase 30 anos que dediquei ao sistema de justiça, participando do Grupo Gestor Nacional das Casas de Justiça e Cidadania, fundamentaram minha convicção de que o Judiciário precisa servir à cidadania substantiva, e não reproduzir privilégios coloniais.

    O constitucionalismo dialógico que defendo e a Praça de Justiça que começamos hoje, em 01 de outubro em Canudos, materializam essa visão: justiça como prática relacional e colaborativa, direitos como realidades interdependentes, cidadania como construção processual que requer reconhecimento, redistribuição e representação.

    Nossa Constituição de 1988 é generosa. Cabe ao Judiciário garantir que essas promessas constitucionais se cumpram para todos, especialmente para os historicamente excluídos, sempre com serenidade e abertura ao diálogo.


    Serviços da Praça de Justiça e Cidadania

    Dentre as ações, estará o Atendimento Jurídico e Conciliações, com equipes da Justiça Federal e Estadual, em conjunto com as Defensorias Públicas da União e do Estado, realizando orientações jurídicas, atendimentos individualizados e audiências de conciliação e mediação de conflitos. Haverá perícias médicas do INSS no local e um foco especial em solução extrajudicial de demandas.

    Diversos órgãos vão emitir documentos básicos, como RG, certidões de nascimento, título de eleitor e Carteira de Trabalho digital, facilitando o acesso da população a seus direitos civis. O INSS prestará orientação sobre benefícios previdenciários e assistenciais, enquanto o INCRA atenderá questões de regularização fundiária, tema crucial para as comunidades tradicionais da região. Também haverá informações sobre outros serviços de cidadania.

    A estrutura contará com serviços de saúde, incluindo triagem, exames médicos rápidos e orientações preventivas de enfermagem. No eixo de desenvolvimento sustentável, especialistas do meio ambiente conduzirão palestras sobre convivência com o semiárido, prevenção à desertificação e gestão hídrica, com participação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMA) e do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS).

    Alinhado ao Ano da Justiça Restaurativa instituído pelo CNJ em 2025, o evento incorporará práticas de Justiça Restaurativa, promovendo Círculos de Paz e Diálogo Comunitário que aproximam autoridades e moradores em um ambiente de escuta e reconciliação. No encerramento do primeiro dia, todos se reunirão em um Grande Círculo de Paz e Cidadania, fortalecendo laços de confiança mútua.

    Além disso, em parceria com o Sistema S — SESI e SENAI — e federações empresariais, serão oferecidas oficinas de capacitação profissional e empregabilidade para jovens e adultos, educação financeira e orientação sobre direitos do consumidor.

    Programação Cultural

    O projeto traz um rico componente cultural e educativo para resgatar a história e celebrar a identidade de Canudos. Estão previstas apresentações artísticas de grupos locais — de bandas de pífanos a repentistas —, peças teatrais, contação de histórias, cine-debates e rodas de conversa sobre memória, direitos humanos e meio ambiente.

    Visitas guiadas ao Memorial Antônio Conselheiro e ao Parque Estadual de Canudos serão oferecidas, permitindo que moradores e visitantes conheçam os locais emblemáticos da guerra, hoje preservados como verdadeiros museus a céu aberto. Essa integração de cultura e justiça reforça a importância da memória histórica para a cidadania, homenageando a resistência sertaneja narrada por Euclides da Cunha em ‘Os Sertões’.

    Ações da Praça de Justiça e Cidadania de Canudos. Foto: Divulgação
    Ações da Praça de Justiça e Cidadania de Canudos. Foto: Divulgação

    Ações da Praça de Justiça e Cidadania de Canudos. Foto: Divulgação
    Carlos Pires Brandão, ministro do Superior Tribunal de Justiça. Foto: Divulgação

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