Nos últimos anos, a partir de 2013, o segmento de construção pesada encolheu muitas vezes no Brasil. Resultado de uma combinação de queda expressiva de investimentos em infraestrutura, juros nas alturas e da criminalização da atividade de engenharia no país, com a Operação Lava Jato.
“Grandes empresas fecharam e diminuíram bastante de tamanho, mas o impacto foi muito maior nas pequenas e médias”, avalia o baiano Claudio Medeiros, presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada-Infraestrutura (Sinicon), em entrevista exclusiva ao A TARDE.
Apesar da crise, Medeiros está otimista com o futuro e defende o investimento público na infraestrutura do país. “Costumo dizer que infraestrutura é emprego na veia. É a fórmula para superar qualquer crise”, defende o empresário, que recentemente passou a integrar o Conselhão do governo Lula. Saiba mais sobre o setor de engenharia no país na entrevista que segue.
Você já afirmou que o Brasil vive um momento crucial na retomada do desenvolvimento econômico e social. Porque o investimento em infraestrutura é condição chave para isso?
Costumo dizer que infraestrutura é emprego na veia. Somos o setor com maior formalidade, que emprega a mão-de-obra mais vulnerável que existe. E somos um setor transformador. Por que transformador? Existem programas que são desenvolvidos em diversos canteiros de obras pelo Brasil afora onde fazemos a capacitação dessa mão-de-obra. Seja desde uma escola básica. Eu, por exemplo, fui professor de matemática quando fui jovem trainee em canteiros de obras há alguns anos. Vai desde ensinar português, matemática até o ofício de pedreiro, carpinteiro, marceneiro. Além disso, o setor da infraestrutura move mais de 64 setores da economia. Temos um estudo realizado pelo Sinicon (Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada) que a cada R$ 1 milhão investido no setor da infraestrutura vira R$ 1.44 milhão no PIB. Através de impostos, de emprego e renda, de movimentar outros setores da economia – são mais de cinco mil segmentos que você pode está beneficiando. Então, é emprego na veia, é a fórmula para superar qualquer crise. Quando os Estados Unidos entraram em recessão em 2008 e agora recentemente com o Covid, a resposta foi investimento em infraestrutura. Eles lançaram agora o maior pacote da história, 1 trilhão de dólares. A resposta é infraestrutura.
Tocando esse assunto, o presidente Lula anunciou que o governo federal vai investir esse ano R$ 23 bilhões em obras públicas. Como o setor de construção pesada recebeu esse anúncio?
Ficamos na expectativa muito grande desse lançamento, desse programa, e com entusiasmo porque R$ 23 bilhões para este ano é mais do que o último governo realizou em todo período de quatro anos. Temos realmente muita esperança de que esse investimento possa reativar a economia e que possamos voltar a viver anos de desenvolvimento e de oportunidade de crescimento para toda sociedade.
Você acredita que esses investimentos devem ser a maior parte de capital público ou aposta também na iniciativa privada ou em outras formas como as parcerias público-privadas, por exemplo?
É fundamental, principalmente neste start agora, que se tenha investimento 100% público. Temos demanda para investimento 100% privado, investimento através de concessões, PPPs, mas precisamos também de investimento 100% público. Nos últimos anos foram licitados e contratados vários projetos, mas eles ainda não saíram do papel. Tem muito contrato assinado e que precisa sair do papel. Mas com a taxa de juro alta, como temos hoje no Brasil, de 13.75% ao ano, é difícil algum projeto conseguir financiamento e que equilibre dando retorno ao acionista. Aí entra o papel do Estado como fomentador do crescimento e do desenvolvimento regional, do desenvolvimento setorial. Fazendo o papel de investidor para atrair novas oportunidades de desenvolvimento para certas regiões do país.
Você falou da taxa de juros. Primeiro queria saber como você está vendo essa queda de braço entre o governo Lula e o Banco Central e como essa taxa impacta no setor de construções pesadas?
Não só para os empresários, mas para a população como um todo, a taxa de juros está muito agressiva, bastante prejudicial à economia. Acredito que é preciso se ter um alinhamento entre o governo e o Banco Central. A independência do Banco Central não quer dizer rebeldia. Você pode ser independente, ter autonomia nas suas decisões, mas é preciso que tenha um alinhamento com a política macroeconômica do Estado.
Desde 2016, o Brasil vive uma baixa histórica de investimentos na infraestrutura. Qual é o efeito dessa baixa para a economia?
Temos aí o desemprego, alta inflação, o setor de engenharia como um todo foi desestruturado, encolheu-se. Não quero passar uma imagem negativa, mas você vê muito engenheiro hoje fazendo a vida como uber. Sem demérito a profissão nenhuma, mas são pessoas qualificadas, que estavam produzindo, construindo, transferindo conhecimento, mal aproveitadas no nosso setor econômico. Um estudo realizado recentemente pela consultoria Tendência, contratado pelo Sinicon também, mostra que tivemos uma perda de quase meio milhão de ocupações diretas no segmento de infraestrutura. Entre o pico em 2013 e o pior momento da nossa crise, em 2020, nós perdemos 520 mil postos de trabalho diretos só na área de engenharia. Em termos de empregos indiretos lembro que normalmente a gente calcula um emprego direto para quatro indiretos. Na demissão deve ser a mesma coisa. Fora o fechamento de cerca de 500 empresas. Isso comparado desde 2014, quando tínhamos 2.700 empresas até o valor mais baixo, em 2017, quando chegamos 2.224 empresas de construção pesada do setor de engenharia. Queda do valor adicional do setor de infraestrutura proporcional de menos 1,3%. Forte retração no consumo de material de construção. Passou de um pico de consumo de R$ 37 bi para R$ 16,2 bi. Isso entre 2014 e 2019. Queda das exportações de serviços de construção pesadas. Nós passamos de um pico de 1,5 bilhão de dólares ao ano, no período de 2010 a 2014, a praticamente zero de 2014 a 2019. Primeiro, o BNDES fechou todas as linhas de crédito para essa linha de exportação de engenharia. Segundo, a enxurrada de fake news a respeito do como funcionava esse crédito à exportação. Os maiores países, as maiores indústrias mundiais, funcionam com a política de crédito à exportação. Somos nós que não vamos aderir a uma tendência, a uma fórmula de sucesso dessa por conta de fake news? Precisamos desmistificar esse tema e voltar a defender o crédito à exportação.
E o Brasil sempre se destacou nesse setor de engenharia…
O Brasil sempre foi referência mundial do segmento. Nós tínhamos cinco, seis empresas brasileiras que eram de nível mundial, exercendo engenharia em toda América Latina, nos Estados Unidos, na Europa, na África, até mesmo no Iraque, temos referências de empresas exportando engenharia de qualidade.
Olhando em retrospectiva, quais foram os efeitos da Operação Lava Jato no setor de engenharia?
A operação desmantelou a cadeia por completo. Aliado a isso, houve a diminuição do nível de investimentos no setor de infraestrutura. Como falei antes, foram R$ 20 bilhões investidos nos últimos quatro anos, um valor irrisório para o que já foi no passado e para o que se pretende realizar neste ano. Com a Operação Lava Jato tinha-se uma ideia de que as empresas grandes iam deixar de existir. Mas foi pior: houve uma retração completa do mercado. Pela falta de oportunidade, pela falta de investimento, tanto público quanto privado. Por isso, as empresas maiores precisaram olhar para um mercado que até então não se olhava. Um mercado de obras de valores menores, bem menores. As médias passaram a olhar para outras obras bem menores e criando uma concorrência com as pequenas que, por não terem a mesma capacidade de sobrevivência, terminaram, essas sim, fechando. O número de empresas no setor, pequenas e médias, que fecharam é enorme. Grandes empresas também fecharam e diminuíram bastante de tamanho, mas o impacto foi muito maior nas pequenas e médias. Antes, dizia-se que as pequenas empresas iriam virar as médias, as médias iriam virar as grandes, mas o que aconteceu foi ao contrário. As grandes viraram médias, as médias ficaram pequenas e as pequenas fecharam.
Isso afetou também o crédito exportação?
Nos últimos anos foi bastante questionada a questão da construção de um metrô no exterior ou de um porto ou aeroporto, e não no Brasil. Primeiro, são coisas que não concorrem. São fontes de recursos dentro do orçamento nacional distintas, o financiamento para obras públicas no Brasil e para exportação de bens e serviços no exterior. Você não financia o projeto no exterior, você financia a exportação de bens e serviços no exterior, gerando emprego e renda no Brasil e incentivando a indústria nacional a exportar itens que serão utilizados nestes projetos. Sejam bens materiais ou serviços de engenharia que vão ser executados. Essa é uma pauta que nós defendemos no Sinicon. Precisamos esclarecer esses pontos.
De fato e aí faço um mea culpa porque o segmento da engenharia também nós do Sinicon não saímos naquele momento em defesa desse processo de crédito à exportação. Seis países no mundo são grandes financiadores e incentivadores do crédito à exportação – Estados Unidos, China, França, Turquia, Rússia e Brasil. Certo. Hoje nós perdemos esse mercado. O Brasil exportava 5 bilhões de dólares, hoje está em 500 milhões de dólares. Com um financiamento de crédito a exportação, você pagava as empresas aqui no Brasil e exportava esses bens para que fossem pagos, nos seus contratos, em dólares ao país. Ou seja, você atraia dólares para a balança comercial. Um estudo do Sinicon, feito em 2014, mostrava a quantidade de pequenas empresas que exportavam seus bens e serviços através dessas grandes empresas que atuavam como intervenientes exportadoras. Sabe qual era o maior exportador de sapatos do Brasil naquela época? Não era uma indústria de calçados. Eram as empresas de engenharia porque os trabalhadores precisavam utilizar bota de EPI. E a bota de EPI era produzida no Brasil . A duração de uma bota é de três a quatro meses, então tem que renovar por questão da segurança. Se você tinha no exterior um milhão de trabalhadores brasileiros, você tinha quatro, oito milhões de sapatos exportados.
Tem um cálculo de quantos empregos foram perdidos nesses últimos anos em função da retração dessas exportações de bens e serviços?
No auge da exportação de bens e serviços de engenharia a gente tinha cerca de 1,2 milhão de empregos nessa área que sumiram. Nesse mesmo caso, revela que ali no complexo da Rocinha, no Rio de Janeiro, existiam 22 cooperativas que exportavam fardamentos através dessas empresas de engenharia de construção. Toda uma cadeia aí foi dizimada e a gente precisa recuperar não só a engenharia, como todos esses setores que movimentavam a economia brasileira.
As empresas todas passaram por um processo de reestruturação, de governança, de compliance, de certificações, de busca por eficiência. Paralelo à isso, muitas precisaram também diversificar. Algumas largaram a participação em investimento público e focaram somente nos privados. Teve aquelas que realmente abandonaram a área de construção e focaram em outros segmentos que já tinham negócios. E teve ainda quem abriu mão de outros negócios e focaram no negócio de origem, que era a engenharia. Foi um caminho de ajuste de foco. Cada empresa com sua estratégia que, alinhada com seus acionistas e com o seu portfólio, considerou mais adequada. Não teve uma solução unânime. Cada uma participou ou de fusão ou de separação, se dividiram.
Você defende a criação de um fundo garantidor para construção pesada. Como esse fundo funcionaria e por que ele é importante?
Como a gente vem falando, o setor de engenharia como um todo foi muito fragilizado. As empresas estão fragilizadas, seja pela redução do investimento em infraestrutura, diminuição de projetos, endividamento, ou seja por questões de multas e por outros compromissos com credores. O setor está fragilizado e as empresas com dificuldades para conseguir garantias e muitas vezes até capital de giro para executar os projetos contratados. Gosto de exemplificar da seguinte forma. Quando você me contrata para reformar sua casa, você compra todo material de construção. Eu contrato a mão-de-obra, mas quando chega ao final do mês eu te dou a medição, você verifica e faz o pagamento. Com isso, eu pago aos meus fornecedores, os salários, recolho meus impostos e tiro minha parte de do resultado. Quando a gente está falando de uma obra pública, você me contrata, eu compro o material para a execução da obra, pago a mão-de-obra, emito a nota do imposto para só depois receber. Então, você tem outro fluxo e precisa ter recursos disponíveis. E hoje em dia, exatamente por termos vindo de um processo de oito anos com baixo investimento, com pandemia, com Lava Jato, as empresas de engenharia apanharam muito. Precisamos hoje recuperar a engenharia nacional. É como funciona com a Marinha Mercante. Você tem um fundo garantidor da Marinha Mercante. Um fundo no qual o Estado possa dar a garantia para bancos públicos ou privados adiantarem algum capital de giro baseado num contrato que seja público e até mesmo emitir as garantias de performances desses contratos. Isso baixaria o custo do crédito. Temos alguns estudos que mostram que teriam alguns fundos com disponibilidade para fazer essa cobertura. Essas empresas pagariam um FIR à gestão desse fundo, que garantiria esses recursos para cobrir um eventual default delas. Com isso, você criaria uma base zero na qual as empresas fossem avaliadas em um processo seletivo pela sua capacidade de entrega, capacidade de performance e não pelos seus balanços que foram duramente impactados nos últimos anos.
A pujança do setor do agro realmente é muito forte, mas o agro é porteira para dentro. Porteira para fora é infra. Você precisa escoar a produção. Para você escoar a produção, você precisa de rodovia, ferrovia, portos e aeroportos. A infra complementa o agro. Senão você produz e perde. Não tem como escoar ou aumentar o seu custo de produção, porque você perde muita carga nas estradas. A infra vem como solução, inclusive, para maior exportação e maior aceleração do agro. Nós trabalhamos juntos na mesma linha de desenvolvimento do país.
Em um artigo, você afirmou que, como poucas vezes na história, há uma confluência de fatores políticos que faz da Bahia a bola da vez do desenvolvimento nacional. Quais são esses fatores e como o Estado pode aproveitar o momento?
Primeiro, a grande vitória que o Nordeste, principalmente a Bahia, deu ao presidente Lula nas últimas eleições. Aliado a isso, nós temos hoje um presidente que ama a Bahia. Temos dois ex-governadores em cargos importantes do primeiro escalão no governo federal, o ministro Rui Costa na Casa Civil, e o senador Jaques Wagner como líder do Governo. Temos três senadores alinhados com os setores produtivos, Angelo Coronel Otto Alencar e Jaques Wagner. Temos uma ministra para resgatar e valorizar a nossa cultura, Margareth Menezes. Temos um procurador-geral da República baiano, Augusto Aras. Temos o presidente do TCU, Bruno Dantas. E temos um secretário especial de PPIs que é o nosso ex-secretário estadual de infraestrutura, Marcos Cavalcanti. Então, temos uma confluência de representatividade baiana no primeiro escalão do governo. Em defesa não só do Brasil, mas também da Bahia, acho que é uma influência que cria um alinhamento dos astros muito favorável a Bahia. Temos que aproveitar e atrair investimentos à infraestrutura para gerar emprego e renda para os baianos.
Com todo esse alinhamento, acredito que temos algumas obras que tendem a sair em curtíssimo prazo. Temos a ponte Salvador-Itaparica, que tenho muita esperança, muita expectativa na realização dessa ponte. Temos a própria Fiol, o Porto Sul, o VLT, temos inúmeros projetos anunciados pelo interior dado através do governo da Bahia. Temos também as concessões de infraestrutura sendo discutidas. Acho que vamos ter um boom de desenvolvimento e de obras. A Bahia vai ser um canteiro de obras nos próximos anos. Eu disse que confio no negócio e vou te dar um dado. Em um dia de concretagem no pico da obra da ponte Salvador-Itaparica vai ser lançado mais concreto do que hoje se lança em Salvador toda. Em um único dia.
A ponte é fruto de um contrato que vem sendo feito com os chineses. Teve a visita do presidente Lula recentemente à China. Como o senhor vê todas essas relações com os chineses?
Vejo com bons olhos e acredito que nesse aspecto a Bahia mais uma vez saiu à frente. A Bahia tem alguns anos conversando com os chineses para a construção da ponte Salvador- Itaparica. Tem alguns anos conversando para atrair investimentos também para VLT, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Temos a possibilidade de trazer uma fábrica de carros chineses agora para Camaçari. Então, eu acho que nesse aspecto, fazendo um trocadilho, a Bahia abriu os olhos há mais tempo e está bem alinhada com esse novo cenário. Não podemos desconsiderar nenhum outro grande parceiro comercial. Isso é uma política do governo Lula de voltar a ter representatividade e protagonismo no cenário internacional. Estamos em negociação com os próprios Estados Unidos, com a Argentina, que é um grande parceiro comercial do Brasil. A gente precisa voltar a ter um protagonismo internacional em toda América Latina.
Me senti muito honrado e lisonjeado com o convite e estou, mais uma vez, com muita expectativa de poder contribuir. O Conselhão é um ambiente diverso, plural, que favorece a troca de ideias. Foi uma experiência rica a nossa primeira reunião. Estou agora trabalhando com alguns temas dos grupos temáticos que foram enviados. É um ambiente no qual temos desde uma associação de moradores de rua até empresários do porte de Abílio Diniz e Luiza Trajano. E tem vários sindicatos, tanto da área patronal, como é o caso do Sinicon, representando o setor de infraestrutura, como da área de representação trabalhista. É um fórum bastante qualificado representado por todos os setores da sociedade e vejo com muita esperança de sair muitas contribuições para a reconstrução desse nosso Brasil.