Se o hidrogênio verde é mesmo o combustível do futuro, a Bahia tem uma enorme janela de oportunidade para aproveitar a transição energética e desenvolver economicamente o estado. “A possibilidade de termos energia solar e eólica com um custo baixo é fundamental para viabilizar a indústria de hidrogênio verde”, explica o economista José Sergio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras e especialista no assunto, nesta entrevista exclusiva ao A TARDE.
Para Gabrielli, o estado tem todas as condições de fazer um complexo industrial a partir do hidrogênio verde, olhando principalmente para o mercado doméstico. Ele acredita que, em poucos anos, as tecnologias desenvolvidas para a produção do hidrogênio verde estarão muito mais baratas e a Bahia terá condições de liderar esse processo no Brasil. Entenda como na entrevista que segue:
O governador Jerônimo Rodrigues esteve em maio na Europa, junto com outros governadores do Nordeste, em busca de investimentos em energias renováveis, sobretudo para o hidrogênio verde. O que a Bahia tem a oferecer para atrair esses investidores internacionais?
A Bahia tem excelentes condições para desenvolver um novo setor econômico no Brasil. O mundo está precisando substituir os combustíveis fósseis, porque eles contribuem com as emissões de CO2, que são responsáveis pelo aquecimento global. O hidrogênio verde é uma possibilidade de redução das emissões. O Nordeste tem dois tipos de possibilidades. Você tem uma região litorânea – principalmente do Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco – onde os ventos são muito bons. E você tem a Bahia e o Piauí, onde os ventos interioranos também são muito bons. Nossos ventos na margem direita do São Francisco são excelentes. E a possibilidade de nós termos energia eólica, com um custo muito baixo, é um elemento absolutamente fundamental para viabilizar a instalação de indústria de hidrogênio. Nós temos essa possibilidade porque uma mesma torre, na Bahia, tem um enorme potencial de utilização. Porque os ventos são muito bons e, portanto, o custo de produção no Bahia é mais baixo. Além do mais, como temos no Brasil um sistema interligado de energia elétrica, o fato de aumentarmos o consumo na Bahia, aumenta a eficiência do sistema como um todo. Ao invés de você produzir energia no Nordeste e mandar para o Sudeste, você vai produzir no Nordeste e na Bahia e consumir aqui. Isso aumenta a eficiência e diminui o custo. Terceiro, nós temos linhas de transmissão dentro da Bahia que permitem você aumentar a eficiência da geração elétrica. Temos ainda o Porto de Aratu, que já tem “amonioduto”, que possibilita você levar a produção baiana para o porto. Nós temos o Polo Petroquímico e o tratamento de afluentes líquidos na Bahia, que permite você utilizar a água do efluente do pólo industrial baiano. Ao invés de jogar no mar, você pode fazer eletrólise e produzir hidrogênio na Bahia. Portanto, a Bahia tem todas as condições ambientais e naturais para produção de hidrogênio. Mas nós precisamos avançar para não ser apenas um exportador de derivados de hidrogênio, mas adicionar valor à produção de hidrogênio, com a produção de amônia, metanol, a produção de combustível de aviação sustentável, diesel e gasolina verde no futuro. Temos todas as condições de fazer um complexo industrial a partir do hidrogênio, olhando para o mercado doméstico, e adicionando valor com essas novas tecnologias.
O senhor acredita que o caminho é não transformar essas energias renováveis em commodities, mas agregar valor?
É evidente que vamos conviver com os dois modelos. Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte vão continuar sendo principalmente exportadores. Porque eles têm vantagem por serem zonas de processamento de exportação. Mas é um tipo de exportação primária. É exportar sol, água e vento. O que nós estamos propondo aqui para Bahia é a construção de uma cadeia de valor. Não que a gente vá substituir a produção de eletrolisador (dispositivo que permite produzir hidrogênio por meio de um processo químico). Porque a competição para produzir eletrolisador é muito difícil. Não é que nós vamos produzir de novo mais pás e aerogeradores. Nós estamos pensando em adicionar valor para frente. Desenvolver novos usos para o hidrogênio, para os novos tipos de combustíveis. Produzir o que se chama de combustível sintético e ampliar o leque de opções para reduzir as emissões de CO2.
Muitos consideram o hidrogênio verde como o combustível do futuro. Qual é o potencial dele para modificar a matriz energética mundial?
O hidrogênio é o átomo mais disponível na natureza. Nós temos bastante hidrogênio na natureza, só que é muito difícil de produzir e de capturar. Hoje, o hidrogênio é fortemente produzido a partir de um processo químico com o gás metano. Na produção do chamado hidrogênio cinza, você produz e emite muito CO2 para a natureza. Hoje, o grande produtor de hidrogênio cinza no Brasil é a Petrobras. E o grande consumidor também é a Petrobras, que usa basicamente nas suas refinarias na produção de diesel de baixo teor de enxofre, na produção de querosene de aviação. Um elemento importante que o Brasil precisa fazer é a substituição dessa produção de hidrogênio cinza por uma produção menos emissora de CO2. E a que é a menos emissora de CO2 é a produção do hidrogênio verde. O que é o hidrogênio verde? É exatamente a mesma coisa que o hidrogênio cinza, só que produzido a partir de energia eólica e solar. Quem tem boas condições de produzir energia eólica e solar tem vantagens para produzir hidrogênio verde. O custo do equipamento, que é o eletrolisador, é igual. O que vai diferenciar é a capacidade da natureza de ter vento, sol e água para baixar o custo da produção de hidrogênio. Porque o hidrogênio é um produto da natureza. Você vai apenas dar um choque elétrico na água, separar o H2 do oxigênio. Essa é a grande questão do hidrogênio verde. Mas nós não podemos ficar no hidrogênio puro. Porque o hidrogênio é difícil de transportar. Ele tem uma alta potencialidade energética, mas tem uma densidade baixa. Por isso, é difícil de transportar. Na realidade, em uma grande parte do mundo, o hidrogênio é transportado na forma de amônia ou metanol. E se você conseguir fazer um processo de captura de CO2 para produzir metanol, você tem condições de produzir derivados de hidrogênio que são semelhantes aos derivados do petróleo, só que sem petróleo. Você pode produzir querosene de aviação, diesel verde, gasolina verde, sem utilizar petróleo. Portanto, você abre um conjunto de atividades completamente novas. Tem ainda poucas iniciativas no mundo. Nós temos plantas desse tipo no Chile, nos Estados Unidos, no Texas. Temos mais ou menos 1400 projetos desse tipo no mundo nesse momento. Mas ainda é muito pequena a produção.
Quais são os principais desafios para que esse processo seja acelerado?
O principal desafio é o custo da energia eólica. Evidentemente, estou supondo que o eletrolisador, que é o principal equipamento, tem um custo fixo hoje. Mas os chineses estão numa disputa muito grande com os alemães, incluindo novas tecnologias de robótica e de avanço tecnológico na produção dos eletrolisadores. E há uma generalizada expectativa de que os custos dos eletrolisadores devem cair nos próximos quatro, cinco anos. Por enquanto, nós estamos tomando ele como um dado. Então a grande vantagem é a redução do custo de geração de energia eólica e solar.
Em 2023, na COP 28, o governo da Bahia lançou o 1º Atlas do Hidrogênio Verde (H2V) do mundo. Quais são os próximos passos para transformar esse atlas em ações concretas?
O Atlas é, digamos assim, um desenho georreferenciado das potencialidades. Evidente, que isso dá uma certa lógica de localização de onde vai se desenvolver a possibilidade de produção. O que o Atlas mostra? Nós temos uma grande vantagem eólica e solar no oeste e na margem direita do São Francisco, onde você tem ventos unidirecionais e tem um aumento da velocidade do vento à noite – que é diferente do vento litorâneo. Ao aumentar a velocidade do vento à noite, você pode combinar produção de energia eólica com a produção de energia solar durante o dia. Com isso, você aumenta a produtividade das mesmas torres. A torre, que custa a mesma coisa no oeste da Bahia, no São Francisco, vai ter de 20 a 30% maior capacidade de produção do que nos outros lugares. O que significa de 20% a 30% de custo menor. Portanto, nós temos uma vantagem enorme. E temos infraestrutura de distribuição de energia dentro da Bahia.
Tanto esses parques eólicos como os solares, estão sendo implantados principalmente no semiárido baiano. Quais são as vantagens e desvantagens para essa região?
Uma das formas de você dar um impacto positivo para esses parques é fazer com que a comunidade onde você vai implantar os aerogeradores ganhe parte da receita que será gerada pela produção de energia elétrica. Com isso, se redistribui renda na região. Você adotar um processo que não aumenta a concentração da propriedade da terra e aumenta a distribuição da renda, numa região como semiárido, tem um impacto de ampliação da circulação financeira e monetária nessa região que é muito pobre. Com isso, os bares, as feiras, o pequeno comércio vão aumentar as atividades. Mas é preciso ter cuidado com os efeitos ambientais. Você tem efeito ambiental principalmente na instalação, porque você tem que botar estrada para levar as torres, têm impactos sobre mananciais de água.
Como a cooperação entre os estados do Nordeste, facilitada pelo Consórcio, pode contribuir para atrair investidores e acelerar a transição energética da região?
A Europa nesse momento, em particular a Alemanha, estão muito interessados em importar principalmente amônia. Eles estão investindo muito no Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte para a construção de plantas de amônia para exportação. Nós aqui temos uma desvantagem, que na verdade é uma vantagem. Nós não temos uma zona de processamento de exportação no Porto de Salvador, nem de Aratu, como eles têm no complexo de Suape e no complexo de Pecém. Nós não podemos nos dedicar somente a exportação. Podemos até exportar, mas temos que equalizar os benefícios da zona de processamento de exportação com aqueles produtos voltados para o mercado interno. A combinação do interesse de Bahia e Piauí, que são mais para o mercado interno, com o de Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, potencializa a vantagem do Nordeste em relação ao hidrogênio verde. Por outro lado, toda a legislação brasileira da transição energética está muito voltada para defender a expansão do biodiesel e do etanol. E o biodiesel e o etanol são fortemente localizados no Sudeste e no Centro-Oeste brasileiro. Portanto, tem um impacto regional grande a política atual de favorecer o biodiesel e o etanol. É um pacto favorável ao Sudeste e ao Centro-Oeste. Defender o hidrogênio como uma nova rota para a transição energética para o Nordeste significa basicamente a defesa da utilização da energia eólica e solar para produção de hidrogênio, que é regionalmente diferenciada. Como disse, o Nordeste tem vantagens reais na produção de energia eólica e solar.
Essa falta de um marco legal, de um arcabouço jurídico, afasta investidores?
Nós estamos em plena discussão de vários projetos no Congresso Nacional. Nós temos o Plano Nacional de Hidrogênio. Nós temos a discussão do mercado de carbono, do programa de combustível para o futuro. Nós temos um conjunto de leis que estão sendo discutidas nesse momento. O projeto do hidrogênio, o relatório feito no Senado recentemente pelo senador Otto Alencar avançou muito na equalização dos benefícios para exportação e os benefícios para o mercado interno. E traz a visão de que temos que potencializar as vantagens do Nordeste na produção de energia eólica e solar, sem prejudicar o Sudeste. Enfim, a legislação está caminhando para definir, digamos assim, os limites mais adequados para a realidade. Por fim, temos avançado muito também na definição de um sistema de certificação. Como o hidrogênio verde é igual ao hidrogênio cinza, você precisa de uma certificação para dizer que um é menos emissor do que o outro. A certificação é estratégica, vital. Estamos avançando muito também nessa questão.
No longo prazo, qual é o potencial das energias renováveis para transformar a realidade da Bahia?
Todos os analistas, todas as consultorias internacionais, mostram que a partir de 2030, vamos ter um enorme crescimento do uso do hidrogênio. Quais são os elementos desse crescimento do hidrogênio no mundo? Primeiro, ele vai deixar de ser usado apenas para refinarias e para produzir fertilizantes. Ele vai ser usado como fonte de energia elétrica e para produzir células de combustíveis para veículos elétricos. Vai ser usado para substituir o óleo combustível nos trens por amônia verde, que viabiliza um trem andar sem grandes emissões. Vai ser usado na navegação. Já há empresas que estão com vários navios comprados e adaptados para usar o metanol no lugar do óleo combustível. Todo mundo diz que, a partir de 2030, isso vai crescer muito. E vai crescer muito porque vai ter também uma queda de preço. Hoje, o hidrogênio verde ainda é mais caro do que o hidrogênio cinza. Essa queda de preço vai decorrer de dois elementos fundamentais. Primeiro elemento que vai entrar é a produção de mais energia eólica e solar em lugares que essa energia é mais eficiente do ponto de vista natural. Em segundo lugar porque a produção de eletrolisadores, que são os equipamentos que transformam a água em hidrogênio, vai aumentar muito na Europa, na China, nos Estados Unidos. Portanto, nós vamos ter um aumento da oferta que deve baixar o seu custo e, com isso, viabilizar mais projetos de hidrogênio.
Há o risco da produção de biocombustíveis concorrer com a produção de alimentos?
A rota orgânica de produção de biocombustíveis é uma rota importante e vai continuar existindo. Mas ela tem limites. Quando ela crescer vai disputar o uso da soja, o do óleo vegetal, óleo animal, do milho. À medida que você cresce a utilização desses produtos, que também são alimentícios, para produção de combustíveis, você começa a ter uma disputa entre a produção de alimentos e a produção de combustíveis . O Brasil ainda tem condições de crescer, mas se crescer muito vai bater na frente. Como essa outra rota eletrolítica está começando agora, nós temos que investir nela.
Mudando de assunto, a nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard, tem uma extensa experiência no setor de óleo e gás. Quais são os principais desafios que ela terá nos próximos anos à frente da companhia?
Eu acho que a Magda tem cinco grandes desafios. O primeiro é, junto com o governo, definir qual é a política de exploração. A Petrobras hoje tem suas reservas que vão começar a declinar a partir de 2030 se não entrarem novos campos. A discussão sobre a margem Equatorial, incluindo também a discussão sobre a margem leste, que envolve a Bahia, e a Bacia de Pelotas precisa de uma definição da Petrobras. O segundo desafio é o que vai acontecer com o refino. Nós estamos com as refinarias da Petrobras trabalhando com 93%, 94% de suas capacidades. Como diz o povo está no talo. Se o Brasil crescer, você vai aumentar a demanda, porque o consumo de gasolina, diesel e outros vai aumentar e a Petrobras não terá mais capacidade de produzir. E aí você vai ter aumento de importação, que é um problema. Nós vamos ter que decidir se vamos começar a construção de uma nova refinaria ou não. Porque uma nova refinaria vai levar cinco anos para ser feita. Se você começar em 2025, você estará com a refinaria em operação em 2030. Terceiro tema: é preciso saber qual é a política da Petrobras para o gás natural. A lei brasileira de gás tirou praticamente a Petrobras desse mercado. A Petrobras precisa, junto com o governo, dizer como é que vai ser. Que tipo de gasoduto a Petrobras vai poder investir, como vai ser a política de reinjeção ou não do gás, como será a oferta da expansão do gás para utilização na indústria. O quarto tema absolutamente vital é a discussão sobre o conteúdo nacional. Você teve uma política de conteúdo nacional muito robusta no passado, que provavelmente não pode ser repetida agora porque não tem mais escala. Você não vai fazer tantas sondas, tantas plataformas como no passado, mas tampouco pode ser tudo feito lá fora. Precisa ver o que é possível fazer aqui dentro. E, por fim, a Petrobras precisa definir claramente o que vai fazer na transição energética. Se vai entrar no hidrogênio, se vai se especializar na produção de energia eólica offshore ou se fazer onshore. Se ela vai produzir combustíveis sintéticos ou se vai só produzir biorefino. Essa estratégia de transição energética não está clara também para a Petrobras.
Raio-X
Formado em Economia pela Ufba, José Sergio Gabrielli de Azevedo tem PhD em Economia pela Universidade de Boston. É professor licenciado da Ufba, onde foi pró-reitor, diretor da Faculdade de Ciências Econômicas e coordenador do mestrado em Economia. Foi diretor financeiro e de relações com investidores da Petrobras, e depois presidente da empresa durante sete anos. Foi secretário de Planejamento da Bahia e coordenou a campanha de Fernando Haddad pelo PT a Presidência. Atualmente, é pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (INEE).