Em entrevista para o A TARDE, o pesquisador da Fiocruz Bahia, membro da Rede CoVida e doutor em biotecnologia e biociências, Tiago Gräf, tem a epidemiologia molecular de vírus de RNA entre suas principais linhas de pesquisa e falou sobre o surgimento e a relevância das variantes do Sars-Cov-2, vírus causador da Covid-19.

Por que os vírus sofrem mutações e como isso acontece?

Os vírus sofrem mutações porque não são muito bons em fazer cópias de si mesmos de uma forma precisa, pois são organismos voltados para a rápida multiplicação. Vamos pensar nos vírus como uma máquina, quando você tem uma máquina que precisa trabalhar muito rápido, ela precisa ser simples e isso provoca alguns erros. O vírus então é uma máquina de fazer cópias de si mesmo, e, como ele é simples e trabalha muito rápido, ele faz muitos erros durante esse processo, esses erros são as mutações. Se a gente for comparar com as nossas células, elas também sempre estão fazendo cópias delas mesmas, mas acontece um processo mais devagar. Animais são organismos muito mais complexos do que vírus, então essa multiplicação e cópia do nosso DNA é um processo muito mais seguro, mais lento e tem um cuidado maior com os erros. Toda vez que uma célula nossa faz uma cópia do próprio DNA e percebe que errou, o sistema que faz essa cópia volta e faz a correção. Isso não é perfeito, claro, tanto que mutações acontecem no nosso organismo também, mas muitos vírus não têm esse processo de correção de erros, então acontecem essas várias mutações e a chance de acontecer um erro é potencializada porque a produção é muito alta. O Sars-Cov-2 é um dos vírus que tem capacidade de fazer a correção dos erros ocorridos no momento de copiar o seu genoma, mas milhões de vírus são produzidos em uma hora num organismo infectado, então é muito alta a chance de algum desses indivíduos, nesse um milhão, possuir mutações.

Todo os vírus têm igual capacidade de mutação? Como classificar o Sars-Cov-2 quanto a esse aspecto?

Nem todos os vírus têm a mesma capacidade de mutação, os genomas de vírus podem ser compostos de RNA ou DNA. Os vírus de DNA, muitos deles têm sistema de correção de erros, e muitos de RNA não têm esse sistema de correção, por isso que os vírus de RNA são os que mutam mais rápido entre todos os organismos que a gente conhece. A maioria das epidemias humanas são causadas por vírus de RNA e os coronavírus todos são de RNA, então o Sars-Cov-2 também. A questão é que os coronavírus têm um sistema simplificado de correção de erro, então a taxa de mutação dele é menor do que de outros vírus de RNA e era esperado que ele mutasse menos. A questão é que a taxa de mutação é muito amplificada por causa da grande produção de partículas virais, e quando a gente está falando de um vírus epidêmico, essa produção se torna maior ainda pois o vírus está se disseminando pela população de forma livre. Considerando que a taxa de mutação do Sars-Cov-2 é baixa, comparada a outros vírus de RNA, mas cada indivíduo produz um milhão de partículas virais por hora, e existem ao mesmo tempo centenas de milhares de pessoas infectadas, então isso é elevado a uma proporção gigantesca, por isso a gente tem visto tantas mutações acontecendo no Sars-Cov-2.

Ao que parece nem todas as mutações de um vírus têm importância epidemiológica? Quais fatores definem as mutações importantes?

As mutações acontecem de uma forma aleatória porque é um descuido que ocorre durante a replicação do vírus. Se essas mutações acontecem aleatoriamente, elas acontecem em qualquer lugar e o processo disso dar uma vantagem para o vírus ou não é aleatório. A maioria delas não traz nenhuma vantagem para o vírus, inclusive a maioria delas é ruim para o vírus, e esses vírus muito provavelmente não serão transmitidos para uma outra pessoa, então as variantes do vírus que tem o que a gente chama de mutação deletéria são perdidas. Aleatoriamente, de vez em quando, alguma mutação pode trazer um benefício ao vírus, e esse sim vai ter uma vantagem maior de ser transmitido para um próximo indivíduo. Isso vai amplificando porque aquele vírus tem uma vantagem competitiva sobre as variantes que não têm essa mutação. Aqui eu falo variante para qualquer forma do vírus que tem uma mutação nova, que é uma variante da versão original do Sars-Cov-2. Então, observando onde as mutações estão acontecendo no Sars-Cov-2, a gente percebe que as mutações mais importantes acontecem no sítio de ligação, uma porção da proteína do vírus (proteína spike), que ele usa para entrar na célula, a gente chama isso de RBD. Essa porção do vírus é uma proteína e é codificada pelo RNA do vírus, quando as mutações acontecem nessa porção, elas são preocupantes, porque elas são selecionadas e muitas vezes elas melhoram o vírus, porque é uma porção muito importante para o vírus. A maioria das mutações que acontecerem ali vão quebrar essa capacidade do vírus entrar na celular, então quando a gente consegue observar mutações nessa região, provavelmente elas trouxeram vantagens ao vírus, porque do contrário esse vírus não ia nem ser transmitido e a gente não ia observa-lo num processo de amostragem e sequenciamento genético.

Quantas variantes de preocupação do Sars-Cov-2 são conhecidas atualmente? Quais já foram identificadas no Brasil?

As variantes de preocupação são, principalmente, aquelas que têm mutações na proteína spike em regiões importantes, várias mutações nessa região, gerando uma modificação substancial da proteína spike, mas as variantes de preocupação também são classificadas como tal quando a gente observa que estão crescendo rapidamente em proporção frente às outras e está causando um aumento no número de casos, deixando a epidemia mais grave. Por exemplo, a variante delta, que foi primeiramente identificada na Índia, ainda em 2020, a gente já tinha observado que ela tinha mutações preocupantes, mas ela não era uma variante de preocupação porque ela não estava relacionada a um aumento de casos, ela só foi reconhecida mais recentemente, depois que houve um grande aumento de casos e mortes na Índia. No Brasil, já foram identificadas quatro variantes de preocupação, a alfa, primeiramente identificada no Reino Unido; a beta, que foi identificada primeiro na África do Sul; a gama (P1) que foi identificada no Amazonas e agora a delta. Mas a realmente preocupante no Brasil é a gama, que surgiu no Amazonas entre o final de de novembro e início de dezembro (de 2020); ela provocou a segunda onda no Amazonas, que foi terrível, e depois se espalhou pelo Brasil inteiro, dominando a epidemia no Brasil, respondendo por mais de 80% dos casos. Ela possui maior transmissibilidade que as outras e também possui capacidade de escape do sistema imune, então pode causar reinfecção e também pode escapar da resposta imune estimulada pela vacinação, apesar de que a doença provavelmente não será grave. As outras variantes de preocupação foram identificadas no Brasil, mas em poucos casos, a alfa é a que possui mais casos no país depois da gama.

Uma pessoa pode ser infectada por mais de uma variante simultaneamente? Em que medida as variantes de preocupação aumentam o risco de reinfecção?

A gente chama de coinfecção, quando a pessoa é infectada por mais de uma variante simultaneamente. Isso já foi detectado, mas parece ser raro. As consequências disso não são muito claras, mas parece que não há relação com a gravidade da doença. Está relatado que as variantes de preocupação aumentam os riscos de reinfecção, pois essas mutações que elas apresentam na proteína spike, além de aumentar a capacidade delas serem transmitidas, também promovem essa capacidade delas escaparem dos anticorpos dentro de uma pessoa, esses anticorpos podem tanto terem sido gerados por uma infecção prévia ou até mesmo por causa de vacinação, porque as vacinas foram todas elaboradas para a primeira versão do Sars-Cov-2, aquela original, que saiu da China. Por muito tempo, o vírus não mudou substancialmente, então as vacinas foram todas planejadas nesse sentido, foi mais ou menos por volta de setembro/outubro do ano passado que, em vários lugares do mundo, umas mutações diferentes começaram a surgir. Provavelmente porque o virus estava se adaptando à questão de muitas pessoas já terem sido infectadas e terem anticorpos contra o Sars-Cov-2, então mutações que favorecessem ele escapar dessa resposta fez com que surgissem as variantes de preocupação. Quanto aos vacinados não é bem claro o quanto conseguem infectar, mas já há vários casos de pessoas vacinadas que se infectaram. Agora, a questão é que mesmo em casos de reinfecção ou casos de vacinados, na maioria das vezes, a doença é branda. Os casos que ficam graves são a minoria, então isso realça a importância da vacinação como instrumento para evitar a hospitalização e evitar o colapso do sistema hospitalar.

Uma vacinação em ritmo lento favorece o surgimento de uma variante que não apresente resposta às vacinas?

Em teoria sim, porque a vacinação com uma dose (considerando vacinas com dose dupla) produz uma resposta imune mais fraca do que com a segunda dose, por isso a segunda dose é necessária na grande maioria das vacinas. Essa resposta parcial gerada pela primeira dose pode fazer com que mutações novas sejam selecionadas, porque o vírus continua replicando, e se está se espalhando entre as pessoas, ele continua mutando. Se alguma dessas mutações aleatoriamente surgir num ponto que favorece o escape para a resposta gerada pela vacina, que é uma resposta ainda fraca na pessoa com uma dose, essa mutação pode ser selecionada e esse vírus pode ter uma vantagem e se disseminar. Por isso que a gente defende tanto que não se poderia relaxar tanto as medidas de restrição enquanto está se vacinando, porque durante a vacinação, as pessoas têm esse sentimento de que as coisas estão voltando ao normal, vão saindo e abandonando as medidas de precaução, o que faz com que o vírus volte a circular em altas taxas. Vírus circulando é vírus replicando, é vírus fazendo muitas cópias de si mesmo e aumentando as chances de que algumas dessas cópias tenham erros que promovam vantagem para o vírus; essa vantagem pode vir no sentido dele ser menos afetado pela resposta do sistema imune, então o ideal é que se faça a vacinação o mais rápido possível. Então, a mensagem mais importante é continuarmos usando máscara, continuar evitando aglomeração, evitar qualquer forma desnecessária de interação com outras pessoas, procurar a vacinação o quanto antes e voltar para tomar a segunda dose.