
Todos os anos, o Carnaval reúne milhares de pessoas que lotam as avenidas, circuitos e trazem uma muita energia para os seis dias de festa. No comando da animação da folia, os artistas são os responsáveis por garantir que o público viva a emoção de cada batida, verso e melodia. Nesse processo, os cantores e cantoras puxam trios, blocos e pipocas durante horas, acompanhados pelos foliões que entonam as canções junto à eles, além de se apresentarem em vários dias consecutivos, sem descanso, e múltiplas no mesmo dia.
Por trás dos artistas, existem figuras fundamentais que garantem que o desempenho seja máximo em todas as apresentações. Pensando nisso, o Anota Bahia conversou com a fonoaudióloga, Valéria Rezende, que já acompanhou grandes nomes como – Léo Santana, Saulo, Carlinhos Brown e Xande de Pilares – para saber os detalhes da preparação vocal dos artistas para o Carnaval.
Como é feita a preparação vocal de um artista para o Carnaval? Quais critérios e técnicas são consideradas e utilizadas dentro desse processo?
A preparação vocal de um artista para o carnaval inicia-se bem antes da folia começar. Meses antes, nós já estamos em contato, realizando avaliações, levantando quais são as principais queixas e o que tem sido desafiador para ele nesse período que precede o carnaval. Para que juntos, possamos construir soluções para resolver em tempo hábil, e que ele consiga uma apresentação de excelência nessa alta performance vocal que ele precisa ter. A gente chama essa alta performance porque ele precisa manter aquela qualidade de excelência e de entrega, do primeiro ao último show de todo esse período. Nós não queremos que ele perca em nada nesse trajeto. Então, com avaliações a gente vai identificando quais são esses pontos, quais as estratégias para a gente adotar diariamente com ele, de exercícios, de hábitos saudáveis, até o aquecimento, o desaquecimento vocal. Realizamos também o monitoramento durante o show para identificar quais são pontos interessantes que precisam de uma atenção especial, ou de intervenção fonoaudiológica, naquele momento, para que ele possa recuperar e seguir ali na sua demanda.
Então, os critérios e técnicas que eu mais considero no atendimento é sempre a avaliação em tempo real. Eu não tenho como avaliar através de um exame ou queixa de meses atrás, um ano atrás, ou com uma voz que ele teve cinco anos atrás. A gente precisa sempre avaliar em tempo real para entender qual é o desafio, qual é a demanda, qual é a necessidade naquele momento, cuidando de todos os ajustes, porque o fonoaudiólogo não trabalha sozinho. São vários profissionais que auxiliam o nosso trabalho. Eu preciso muito da intervenção do otorrino, para saber como está a saúde vocal, fisiologicamente, organicamente, e entender o que aquele cantor precisa. Se ele vai precisar de uma recuperação vocal, de uma reabilitação, caso ele já tenha alguma lesão, ou ser mesmo a prevenção para evitar que futuras lesões aconteçam. Isso precisa estar muito bem ajustado na conduta que a gente cria para esse artista, como vários outros profissionais. Nutricionista, fisioterapeuta, todos ali envolvidos no bem-estar geral e proporcionando soluções para que ele possa entregar da melhor forma possível a sua arte, sua performance e tudo que ele tem para o público, para os seus fãs.
Visando o bom desempenho do artista durante uma agenda exaustiva, como na folia, qual a importância de estar com uma boa saúde vocal, física e as técnicas vocais em dia? Como esses três fatores se relacionam?
Eu sempre falo com os artistas que eu acompanho como é importante, além de adotar cuidados que vão ser benéficos para a saúde vocal, manter hábitos saudáveis e evitar hábitos nocivos. Isso ajuda também na consciência vocal. Porque uma vez que eles abraçam esse olhar, eles se tornam mais conscientes de sua performance, mais conscientes de algo que possa afetar, algo que, ‘poxa, isso não foi legal, não quero repetir’, ou então, ‘nossa, eu tive um ótimo resultado com isso e vamos colocar na rotina’. Então, essa consciência vocal é maravilhosa, porque eles já têm o talento. Então, aliar consciência vocal ao talento, ao dom que eles já têm, isso é maravilhoso. A gente pensa nos cuidados, nas orientações, nos exercícios que vão favorecer, e eles percebem esse ganho. Esse ganho, ele é responsável pela manutenção do entusiasmo, porque a gente sabe que nem sempre os exercícios são agradáveis de fazer. É desafiador ter uma rotina em que você precisa parar para fazer exercícios repetidamente, mas quando eles observam e colocam na balança o resultado que isso traz, isso se torna algo fácil, algo tranquilo para manter essa dinâmica.
Quando a saúde vocal, a saúde física e as técnicas vocais estão em dia, a gente percebe que o artista ele está mais inteirado do seu comportamento, ele está mais atento, ele está mais consciente. Assim, os resultados tendem a ser muito mais positivos. Então a saúde física ela vai interferir sim na saúde vocal, tudo isso está ligado, eu falo que a gente não atende só a laringe, é o corpo todo. A voz vai refletir uma saúde do corpo. Se está com a qualidade do sono em dia, se está sem resfriado, sem alergias, tudo isso vai refletir numa boa saúde, numa boa qualidade vocal. O emocional também, eu gosto de colocar essa esfera que ela é muito importante, o quanto ela reflete na performance vocal. Cuidar disso tudo é o combo de sucesso. As técnicas vocais em dia são aquelas técnicas que foram feitas de acordo com a demanda que aquele artista precisa. Muitas vezes pegar na internet pode ser um grande perigo, alguém passou um exercício ou viu ali, viu fazendo e trazer para a rotina pode ser muito desafiador porque às vezes não leva para o caminho que ele está procurando. Com técnicas personalizadas, de acordo com o que ele precisa, aliado a tudo isso, a nossa chance de sucesso é altíssima e isso motiva a continuar. E o nosso papel enquanto fonoaudiólogos é ir direcionando e sendo o guia nesse processo, valorizar os acertos. Não só para o carnaval, como para todo o ano, a gente sempre pensa nessa qualidade da saúde de forma estendida.
Quais são os principais cuidados e exercícios trabalhados para garantir uma maior resistência vocal e prevenir lesões pela exaustão?
Quando a gente fala nos cuidados para garantir maior resistência vocal, a gente pensa em primeiro lugar na hidratação. É importante garantir que essa hidratação seja feita de uma forma eficiente. A água que a gente bebe, que a gente ingere, o organismo vai absorver e indiretamente vai estar ali hidratando os tecidos. Também pensamos na hidratação direta, que a gente realiza com o nebulizador, o soro fisiológico, que vão direto na via respiratória, em pregas vocais, hidratando toda a estrutura, todo o trato vocal. Então a gente pensa nessa forma também garantir a hidratação do cantor durante o seu percurso de trio, durante a demanda, porque ele perde bastante líquido, ele perde sais minerais, então a gente precisa repor isso também com isotônicos. Outro ponto importante é o sono, a qualidade do sono. É muito desafiador, porque os artistas eles acabam assumindo agendas com viagens, com horários muito apertados, e gerenciar o sono dentro dessa rotina que sai totalmente do habitual é muito importante. Então, garantir qualidade de sono, criar estratégias. Eu gosto muito do tapa-olho, em um momento que está viajando no avião ou vai para um hotel, para que ele possa de fato descansar, sabe? A gente vai criando estratégias para que o sono possa ser da melhor qualidade possível. Isso vai refletir muito no bem-estar dele, vocal e da saúde geral. É preciso manter o repouso vocal. Então, a gente sabe que ele vai usar a voz de forma extensa, precisa ter os momentos de repouso vocal também. Evitar o uso da voz de forma desnecessária, colocar todo o foco ali nas apresentações, nos ensaios, entrevistas, e poupar a voz naqueles momentos de intervalo entre um e outro. Então, repouso vocal também funciona bastante como uma estratégia aliada para prevenir essas lesões. E, de toda forma, evitar competir com ruído, competição sonora, falar mais alto do que o som no ambiente, evitar consumo de bebidas alcoólicas, porque não são boas para a voz. Principalmente evitar aquelas receitas milagrosas usando gengibre, menta, própolis, esses componentes que acabam anestesiando a voz e podem levar o artista a fazer um esforço muito grande por não estarem percebendo o efeito e isso pode, sim, gerar lesões.
Os exercícios que realizamos visam a melhora no tônus muscular, pra ganhar resistência vocal, então a gente pensa em como ganhar tônus muscular para ter mais resistência vocal, trabalhar a ressonância para que a voz possa ter alcance, ter expansão sem forçar a região da garganta. Trabalhamos exercícios articulatórios para promover uma boa dicção, um bom movimento gesto-facial, para que ele evite também forçar a região da garganta, do pescoço, por não estar acionando essa musculatura articulatória de forma correta. Exercícios de respiração, tanto de controle da respiração, de ajustes na respiração, quanto de apoio respiratório mesmo. Os exercícios eles envolvem vários aspectos que a gente precisa estar atento. Por isso, temos os exercícios que são diários, para que ele possa ganhar dia a dia, nesses aspectos. Os exercícios que são voltados para o aquecimento vocal, aqueles que vão preparar a voz para o acontecimento da apresentação. Tem os exercícios de intervenção, que nós realizamos nas apresentações, quando necessário, entre uma música e outra, discretamente. E os exercícios de desaquecimento vocal também, visando promover o abaixamento da laringe, para que ele não continue esforçando. Precisamos zerar ali, para que ele não finalize a apresentação com toda essa estrutura montada para laringe alta. Então, ele pode, muitas vezes lesionar no pós-show. Então, a gente precisa desmontar isso tudo para que ele finalize o show com tranquilidade, descanso vocal, repouso, já pensando na próxima apresentação, que muitas vezes é no mesmo dia, ou às vezes virá no dia seguinte. Em alguns casos, a gente pensa também na reabilitação de uma lesão já existente, prevenção e recuperação vocal. Logo que acorda, a gente precisa recuperar essa voz, para que daqui a pouco a gente inicie o aquecimento, depois o monitoramento e o desaquecimento, e aí vai. Tudo isso dentro do horário que o artista tem em tempo hábil, considerando sono, considerando tudo.
A alimentação também é um fator crucial dentro de todo esse processo?
Alimentação balanceada também é importantíssima, porque ele vai conseguir justamente ter esses períodos de descanso, de sono e de performance vocal ativa, sem a interferência do refluxo. Muitas vezes o médico precisa entrar com a medicação para controle de refluxo, mas os hábitos alimentares eles estão diretamente relacionados a isso. Então se ele se alimenta de alimento muito pesado, muito condimentado, ele vai ter dificuldade para dormir, ele vai sentir incômodo na hora que estiver em cima do palco para cantar. Então não é um exercício, mas é uma orientação muito importante, que é o cuidado com a alimentação. Alimentação saudável, balanceada, que ao mesmo tempo precisa dar energia para ele. Ele vai gastar a musculatura, ele vai exercitar ali a musculatura, ele precisa da energia necessária para ele não entrar em fadiga vocal mais rápido. Então, a alimentação é sempre assim o nosso alicerce para que ele consiga também dar conta de todo esse processo.
A tecnologia e inovações vem sendo uma aliada nesse processo de preparação e prevenção?
Com certeza, as tecnologias e inovações auxiliam bastante nosso processo de conduta terapêutica. Quando a gente utiliza equipamentos como massageadores, para relaxamento, materiais de trato vocal semiocluído, tubos de ressonância, que a gente utiliza para ganhar resistência vocal, ganhar em condicionamento, ganhar em projeção da voz, tonificação, percepção, consciência vocal. Utilizamos softwares também que ajudam bastante até no monitoramento. Tem softwares de análise acústica, que o cantor consegue observar ali as notas em tempo real, durante os exercícios, o que facilita nos ajustes que ele precisa fazer. Tem também recursos como eletroestimulação e laser terapia, eu particularmente não trabalho com esses dois últimos, mas vários outros colegas na fonoaudiologia utilizam com ótimos resultados também. A melhor tecnologia é sempre a auto-percepção. Tudo que a gente favorece para que o artista se perceba é para evitar que ele leve a voz para um lugar não confortável. Toda essa tecnologia e toda estratégia que ajude nisso é super válida. Quando a gente utiliza esses recursos é para garantir é justamente isso. Utilizamos vocalizes eletrônicos com melodias para que ele possa auditivamente ir monitorando aquelas escalas, as notas, as variações e os ajustes que ele precisa fazer.
Utilizamos também incentivadores respiratórios, que é algo muito trabalhado também na fisioterapia respiratória. Na fonoaudiologia nós também utilizamos para essa percepção tanto da respiração vocal, com o respiron, shaker, acapella, temos o powerbreathe, vários recursos vinculados para a área da respiração. Utilizamos também a termoterapia, que é um recurso que utiliza tanto o estímulo quente quanto o estímulo gelado também, que é a crioterapia. A aromoterapia é muito interessante, particularmente dos olhos essenciais que, em cada momento específico, tem uma indicação específica. Os pacientes respondem muito bem e, claro, a gente vai observando em cada um qual é a reação, qual é a aceitação, para que a gente possa utilizar como aliado e jamais como incômodo ou algo que vai gerar alguma insatisfação ali naquele momento. Então todos os recursos são várias estratégias e vários aliados, mas tem que ser muito bem pensados e testados com cada um para que a gente possa construir no protocolo quais recursos para aquele paciente vai fazer efeito. A gente sabe que com a questão da internet muitos recursos são difundidos, um vídeo, uma postagem, e às vezes as pessoas tentam imitar. Nem sempre aquela estratégia, aquela técnica vai ser indicada para aquele caso. Só o recurso em si não irá trazer os benefícios que um recurso aliado aos exercícios, ao planejamento terapêutico, a uma metodologia, a um objetivo. Tudo alinhado traz ótimos resultados, quando está associado a uma estratégia personalizada e pensada para cada pessoa, para cada artista.
Além dos artistas, os foliões também soltam a voz durante os seis dias de festa. Quais dicas você daria para quem quer cantar e curtir a festa, mas sem prejudicar tanto a voz?
A principal dica para os foliões é evitar competir com o ruído. Tudo bem, quer cantar, mas evita gritar mais alto que o trio, mais alto que o som, vai dublando de vez em quando, movimentando a boca e dançando, usa expressão corporal, dança e pule, mas evitar o grito ali, forçar junto com competição sonora. É preciso ter essa prudência. A gente sabe que às vezes estamos muito próximos à caixa de som e principalmente atrás do trio, onde tem ali o som muito forte, então evitar essas regiões em que a gente sabe que vai ter um baque maior em relação ao volume, para que possa evitar e, principalmente, proteger a audição. Falamos aqui de voz, mas precisamos também cuidar muito da nossa audição. O folião também pode utilizar um protetor auricular para atenuar esses níveis de decibéis muito agressivos. Então evitar ficar muito próximo à fonte sonora, para não prejudicar a audição, se hidratar bastante. Enquanto está em casa se hidratar, enquanto está no percurso também, promover maneiras de favorecer a hidratação. A gente sabe que existe um consumo de álcool nesse período, então não deixar também de consumir água, a gente não pode tirar de um e dar lugar para o outro. Outro fator também é a qualidade do sono. Descansar, repor as energias, recuperar, isso é muito importante para conseguir manter o pique. Cuidar da alimentação, da saúde, da imunidade, isso é muito importante, tanto para os artistas quanto para os foliões. A imunidade, ela, estando em dia, favorece muito para a gente não ficar suscetíveis às infecções geralmente que a cometem esse período. Cuidar da imunidade é criar uma blindagem fortalecida para que não fiquemos alvos fáceis dessas doenças oportunas desses momentos.
Outra dica é conversar próximo às pessoas. Ao invés de ficar gritando, quem tá do outro lado da rua, do outro lado, vai perto dessa pessoa. Converse com ela, de preferência, tendo apoio visual, pra que a articulação seja favorecida e não force tanto a voz. Então, estar perto das pessoas ao conversar com elas, evitar gritar e falar alto demais. E eu costumo falar que os foliões estão ali com celulares querendo filmar, contar o que está acontecendo e, muitas vezes, justamente pelo ruído de fundo, eles acabam gritando, forçando a voz e falando de uma forma para que no vídeo a voz tenha nitidez e destaque em comparação àquele som do ambiente. E isso repetidamente acontecendo naquele dia, naquele evento, em vários eventos seguintes, gera uma sobrecarga bem prejudicial.
Valéria Rezende já acompanhou: Pablo, Léo Santana, Saulo, Carlinhos Brown , Xande de Pilares, Majur, Xamã, Major RD, Dilsinho, Maglore, Barões da Pisadinha, Filhos de Jorge, Clariana, Pedro Pondé, Filhos da Bahia (Migga), Pretinho da Serrinha, Simária, Kevi Jony, Ana Catarina, ToqueDez, Mari Antunes, Tayrone, Cavaleiros do Forró, Bailinho de Quinta, Tays Reis, entre outros nomes.


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