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Daniela Mercury. Foto: Celia Santos.

Após um período descrito como turbulento, tanto politicamente quanto emocionalmente, a cantora baiana Daniela Mercury retorna com seu novo álbum Baiana, lançado nesta sexta passada (02). Em entrevista ao Jornal A Tarde, a cantora conta como a vitória do presidente eleito Lula impactou na seleção das mais de 60 músicas que a artista compôs.Definido como um “álbum experimental”, Daniela detalha como quis fazer de Baiana um laboratório para testar novas possibilidades, trazendo vários subgêneros do samba e do axé e mesclando com outros, como o rap e até o trap, muito em voga atualmente.

“Fiz esse laboratório com diferentes sambas nesses três, quatro anos. Esse disco vem desse laboratório, desse tempo de teste. Eu gosto de tirar gente desse espaço de conforto. As pessoas olham pra mim e já me colocam no lugar do axé, sem saber ao que de fato ele está ligado. O axé está ligado ao carnaval, mas absorve um universo de história de vários sambas, velhos e novos. A gente que toca, na hora que canta e toca, percebe o que está ali, mas a criatividade é imensa em cada grupo de músicos e artistas”, conta. “Sempre amei samba, venho fazendo sempre essas variações. Uso esse domínio rítmico e vou mudando a letra. Eu gosto de fazer essa mistura nos meus álbuns”, acrescenta.

Escrita durante a pandemia, Daniela detalha como o período foi de muita introspecção para ela, o que a ajudou a escrever muitas das músicas. Também foi base para uma reavaliação sobre sua infância e adolescência. “Nessa pandemia é inevitável rever as nossas memórias, foi um tempo de preocupação e de introspecção. São nesses momentos em que a nossa vida é ameaçada que nós repensamos sobre ela. Eu revi minhas memórias da infância e adolescência, com meus pais e avós. Esses anos me transformaram muito, transformaram todos nós”, pontua.

Não foi só para a conclusão do álbum que Daniela teve em mente as eleições. Baiana também é marcado por muitas músicas de cunho político, em especial com críticas à anti-democracia, aos preconceitos e a desigualdade social que afetam o Brasil atualmente. “Defesa de pautas como o clima e a democracia, não só seguem fundamentais, mas tornaram-se mais importantes ainda, tanto quanto era na época das Diretas Já. Assim como foi importante no passado, precisamos não deixar essa naturalização da anti-democracia que vivemos nesse clima de guerra cultural. É preciso que isso se reflita nas músicas”, afirma a cantora.

“Chega esse governo antidemocrático e a primeira coisa que faz é atacar as artes. Atacar os artistas, que são sempre aqueles que estão falando do que está acontecendo – e não existe arte sem a liberdade, é impossível falar apenas das nossas angústias, é preciso falar dos preconceitos, do que estamos vivendo”, demarca a artista. No álbum também são feitas várias referências sobre a luta das mulheres e seu papel na história, desde a independência até movimentos atuais, como o Ele Não em 2018. “São as mulheres que estão na luta pela independência no Brasil no século 21 e na independência de fato do 7 de setembro. A nossa participação, dos indígenas, dos caboclos, dos nordestinos, dos baianos está toda lá, em figuras como Maria Quitéria, Joana Angélica etc”, detalha. “Quando comecei a escrever [a canção Mulheres do Mundo], eu quis trazer vários nomes da independência e trouxe dessas mulheres que estavam lá”, afirma Daniela.

O lançamento de Baiana também coincide com o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Daniela parte desta coincidência e resgata seus ideais na faixa Macunaíma, que traz diversas referências, não só ao personagem, como aos artistas da corrente modernista da época. “Eu gosto muito dessa figura de Macunaíma, porque estamos sempre nessa incógnita de ser brasileiro. É esse herói que não tem uma definição. Eu achei interessante trazer ele pra esse centenário da Semana de Arte Moderna. Na letra trazemos a semana de 22, resgatamos a memória, mas em uma forma diferente, em estilo kuduro. ‘Semana de Arte Moderna/ Muda, mas é eterna”, celebra. “Eu acredito muito no que Mário e Oswald de Andrade diziam sobre o Brasil naquela época e no que ele pode se tornar”

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Daniela Mercury em Portugal. Foto: Celia Santos.

No fim do álbum, Mercury traz uma nota sobre esperança e da volta de uma possível normalidade. Mesmo reconhecendo que os atos antidemocráticos e a Covid não realmente acabaram, são vitórias como a eleição de Lula e a vacinação que deve nos dar essa esperança. “Temos que trazer esse assunto da vacina antropofágica. A vacina é essa coisa que não é só se vacinar contra as doenças, mas se vacinar contra o fascismo. A arte e a cultura são vacinas contra o fascismo”, afirma. “Precisamos seguir na luta, porque ainda há muito autoritarismo e muita falta de compreensão que precisamos ficar atentos”, alerta.

Não só de política versa este novo álbum. O LP também é uma carta de amor não apenas à Bahia, mas ao Nordeste como um todo. Em músicas como Baiana, que dá nome ao disco, ela explora a beleza de Salvador fora do eixo turístico, fazendo menções a outros pontos da capital. Em Disparo a Flecha surge a Daniela romântica, estilo bossa nova. Já em Aglomera, ela encerra o disco em uma nota esperançosa, fazendo referência ao Sonho Impossível de Chico Buarque e Ruy Guerra.

Toda esta variedade de estilos musicais e nas referências estão associadas a uma diversidade rítmica muito grande, concedendo ao álbum um caráter muito único, fazendo com que ele possa ser apreciado por diferentes ângulos. “Geralmente o artista pensa em álbum como unidade. Eu penso como diversidade. São tantos assuntos e referências trazidas. A baianidade vem com essa mistura de todos os sambas, que nascem e vivem aqui e que me compõem como pessoa”, comenta.

“Esse álbum também coincide com os 30 anos do lançamento de O Canto da Cidade, que foi onde eu já trazia essas mescla de ritmos, influências e estilos diferentes. Foi um álbum de virada para mim, que representou uma virada na minha carreira. Mas é também um álbum que reflete como eu sou: eclética e urbana”, conclui Daniela.